segunda-feira, 27 de abril de 2015

Capítulo 6 – Quando os anjos cantam

O toque de sua mão era quente e macio. Não o tipo de maciez de quando passamos hidrante na pele, mas no sentido que era confortável e gostosa de segurar. Edu seguia na frente, mesmo sem conhecer muito bem a casa. Precisei orientá-lo quando chegamos ao final do caminho de pedra que ficava entre a garagem e o jardim. Ele estava quase seguindo pela direita, sentido “Gueto”.

- Hoje a festa é aqui – avisei, puxando-o em direção à sala de estar.

Dentro da casa, o clima não era muito animado. Caio e Alê conversavam sentados no sofá, enquanto o restante do pessoal comia do outro lado do cômodo, onde estava a mesa de jantar. Eu e Edu paramos na porta, analisando o ambiente. Depois, cruzamos os nossos olhares e pela sua expressão, ele pensava a mesma coisa que eu: a noite da pizza não era nem de perto tão animada quanto às festas do Gueto.

- Alguém trouxe baralho? – o carioca perguntou em tom irônico.

- Sempre tem um perdido por aí... – dei de ombros.

- Então vai buscar, pelo amor de Deus. Precisamos dar uma animada nisso aqui!

- Ok, chefinho. Mais alguma coisa? – perguntei fazendo marra.

- Sim. Hoje você vai ser minha parceira – seu olhar sobre o meu não deixava margem para dúvidas: ele estava falando sério.

- Não posso. Tenho um trato com seu primo. Nós sempre jogamos juntos – me mantive irredutível.

- Hoje vocês vão abrir uma exceção – ele afirmou, como se já estivesse tudo resolvido.

- Quem disse? – a petulância dele já estava me tirando do sério.

- Providencie o baralho e depois conversamos sobre isso – Edu encerrou a conversa, soltando as nossas mãos e caminhando em direção ao primo.

Abri a boca e cruzei os braços, indignada por ter sido deixada falando sozinha. Do outro lado da sala, Alê não disfarçava a sua cara de gozação para mim. Pelo jeito, ele e o Caio haviam “assistido” toda a cena. Lancei o olhar para o restante do pessoal: nenhum deles percebeu a movimentação diferente na porta. Uma parte de mim se entristeceu. Se pelo menos a Marília tivesse visto a cena, ela não ficaria mais me enchendo sobre o Edu não querer ficar a sério com ninguém ou querendo me apresentar para qualquer zé mané que aparecesse por aí.

Respirando fundo, subi até o quarto da Carol para pegar o baralho. Nem me preocupei em pedir permissão... Eu sabia que ali eu era mais do que bem-vinda. No caminho, vi uma luz e ouvi uma música baixa vindo do quarto da irmã da Cá. Era tão estranho que ela estivesse em casa...

Quando voltei, os meninos já estavam prontos. Eles haviam se posicionado no balcão do pequeno bar que havia na sala de estar. Alê e Caio estavam sentados um de cada lado, de frente para o outro. Edu estava do lado de dentro do balcão, um pouco mais atrás do Caio. Um banco vazio posicionado na ponta da mesa indicava onde eu deveria em sentar. E, pelo jeito, o carioca seria o meu parceiro.

Pelas conversas altas que tomavam conta da sala, o restante do pessoal finalmente se deu conta da chegada do novato. Marília já estava beirando o balcão, pedindo para jogar, enquanto os outros se ofereciam para entrar de próximo.

- Quem vai embaralhar? – perguntei, deixando as cartas no meio da roda improvisada.

- Eu cuido disso – Caio se ofereceu.

- Peraí, deixa eu sentar antes de começar o jogo – Mari gritou, empolgada.

- Não, senhora! Você está de próxima! A Gabi que vai jogar agora – Alê avisou, cortando o barato da loira.

- Ué, mas você vai jogar com o Caio, não vai? – ela estacou, parada no caminho até o banco. Quase dava para ouvir a pergunta sendo formulada na sua cabeça: se o Alê ia jogar com o Caio, com quem eu iria jogar?

- E a Gabriela vai jogar comigo – Edu respondeu ao questionamento silencioso da loira enquanto o Caio cortava o monte e tirava a manilha – O dois manda no jogo. E aí, parceira? Vamos ou não jogar?

Senti todos os olhares focados em mim enquanto puxava o banco para me sentar. Eu não sabia o que pensar. O que o Edu estava querendo, afinal? E o principal: como eu deveria reagir a esse acesso súbito de interesse por mim? Eu tentava encaixar as peças na minha cabeça à procura de um sentido: primeiro foi o cuidado com o meu tornozelo machucado, depois o beijo, a saída “à francesa” sem nem ao mesmo me dizer um tchau decente e agora isso: mãos dadas, parceiros de truco... Será que todos esses sinais significavam que o carioca estava interessado por mim, contrariando os boatos de que estava “na pixta”?

- Pô parceira, está dormindo? – ele chamou minha atenção após duas jogadas erradas. Estávamos próximos de perder a primeira rodada e entregar três pontos de bandeja para a dupla adversária.

- Acho que a Gabi só sabe jogar com o Alê – o Caio tirou onda com a minha cara. Ai como aquele menino me irritava...

- Não, querido. Estou apenas te dando vantagem para você se iludir um pouquinho. Já, já eu entro no jogo e aí, já era! – falei séria, acabando com a moral daquele chato – Pode deixar eles ganharem a primeira, Edu. A gente recupera na próxima...

- Se você está dizendo... – ele piscou para mim, confiante.

Voltei a me concentrar na partida, deixando minhas dúvidas de lado. O jeito seria sondar o Alê depois para tentar descobrir algo. Naquele momento, eu precisava mostrar para o Caio quem mandava naquele lugar.

Com o tempo, eu e o Edu criamos uma certa sintonia. Combinamos sinais e passamos a antecipar o movimento um do outro. Eu sentia algo estranho todas as vezes que ele cravava aqueles olhos verdes em mim. Era um misto de entusiasmo com medo... Como se ele pudesse ler a minha alma, ou tivesse o poder de decidir o meu destino. Mas não havia como negar: a nossa parceria funcionava muito bem. Depois de um curto período de “adaptação”, parecia que nos conhecíamos há anos.

- Boa parceira! Valeu! – ele comemorou quando conquistamos seis pontos. O carioca estendeu a mão por cima da mesa para um “hi-five” – “Bora” mais uma rodada?

- Haam... Acho que vou passar essa. Tem um pessoal na espera – indiquei a Carol e os meninos com a cabeça depois de tocar sua mão.

Logo os gritos “agora é a minha vez de jogar” se espalharam e aproveitei a deixa para ir até a cozinha. Depois de quase uma hora sentada em frente ao Edu, eu precisava de ar. Era como estar de ressaca: me sentia tonta, enjoada, sem saber qual foi “caminhão que me atropelou”.

Peguei um copo de água para aliviar a sensação de boca seca. Fui bebendo o conteúdo aos poucos, tentando entender a montanha russa de emoções que tomava conta de mim.

- Gabi, o que você está fazendo aqui? – a voz da Mari tomou conta do cômodo.

- Só tomando um gole de água – ergui o copo na minha mão, como se precisasse provar.

- Você não vai falar com o Felipe? Ele está afim de você e é super gatinho – ela chamou minha atenção como se eu estivesse cometendo o pior crime do mundo por ignorar o menino.

- Ai Mari, não estou afim... Ele nem faz o meu tipo! – me defendi, deixando o copo sobre a pia e evitando olhar para a loira.

- E quem faz o seu tipo? O Edu? – o tom de sarcasmo na sua voz me atingiu em cheio.

- Se ele faz ou não o meu tipo é um problema meu. O que não quero é você me jogando para cima de uma pessoa que eu nem conheço. Não estou em uma exposição em uma vitrine, Marília. Não é assim que funciona... – desabafei, me virando para encará-la.

- Mas para o Edu você pode se jogar, né? Pensa que ninguém percebeu? – a garota revidou, agitando as mãos no ar.

- Do que você está falando? Eu só joguei truco com ele... – menti. Aquela não era a melhor hora para falar do beijo, das mãos dadas e de todas as sensações que ele causava em mim.

- Só espero que você não se esqueça que ele não quer se envolver com ninguém! Eu te conheço, Gabriela. Você nunca se apaixonou e, por isso, está se deixando levar pela lábia desse carioca. Mas ele não é o príncipe encantado que você está imaginando – a loira praticamente gritou de volta – Eu só não quero que você se machuque – completou, dessa vez com um tom de voz mais controlado.

- Ninguém está se machucando aqui, Marília. Pode ficar tranquila – respondi, saindo da cozinha. Tudo o que eu menos precisava naquele momento era de alguém para me deixar ainda mais pilhada. Eu sabia que o Edu era... estranho. Tanto que passei a semana inteira me esforçando para tirá-lo da cabeça. Mas o que eu poderia fazer se ele insistia em cruzar o meu caminho?

Parei um canto da sala, bufando de raiva. Como não estava a fim de conversar com ninguém, peguei meu celular e comecei a fuçar em todos os meus aplicativos na tentativa de me distrair.

- Que cara é essa, Gabs? – o Alê se aproximou.

Poxa, estava tão nítido que eu estava brava? – Nada, não... Só a Marília pegando no meu pé – dei um meio sorriso, me esforçando para fazer cara de “não estou nem aí para isso”.

- O que aconteceu? Com o quê ela está cismando dessa vez? – o skatista perguntou.

- Ahhh, ela veio falar que eu estava me jogando para cima do seu primo – confessei, sem jeito – E ainda por cima me acusou por não dar atenção para aquele feioso do Felipe, amigo do Caio. Ela está achando que é assim: arruma qualquer um na rua e traz para me apresentar. Como se eu estivesse muito desesperada para ficar com alguém – completei, esquecendo de fingir que não estava me importando.

- É, o menino é estranho mesmo – meu amigo concluiu, após uma pausa rápida para analisar o Felipe – Já você e o Edu... Você não está se jogando para ele...

- Viu? Eu falei isso para ela... –  me senti a dona da razão.

- Pois é... Se alguém está se jogando aqui, esse alguém é o Edu. O cara não para de dar em cima de você. Está usando um arsenal pesado para chamar a sua atenção... – o skatista completou, dando uma risadinha de quem está se divertindo com a situação.

- Você acha? – perguntei, deixando o celular de lado. Aquela resposta me interessava, e muito...

- Não, não acho não... – ele deu de ombros, caçoando de mim – Eu tenho é certeza. Para, né Gabi? O que foi aquela mãozinha dada ali na porta?

- É que seu primo é meio estranho... – mexi no cabelo, me sentindo estranha de repente. Então eu não estava errada e o carioca realmente estava interessado em mim. Mas e agora? O que eu iria fazer?

- Ele só deve estar meio perdido. Acabou de chegar na cidade, e você ainda fica intimidando o rapaz ganhando dele no truco e tudo mais... Sem falar que a Mari ficou com um papo estranho no dia da festa, falando que tinha medo de você se machucar. Acho que tudo isso está confundindo a cabeça dele – ele opinou, dessa vez falando sério.

- Ela acabou de repetir a mesma coisa para mim: que tem medo que eu me machuque. Qual é a da Mari, afinal? Ela vivia dizendo que eu precisava encontrar alguém. Aí, quando encontro, ela começa a agir desse jeito? – sentia um peso enorme apertar o meu peito. Tantas dúvidas já estavam me enlouquecendo.

- Acho que ela está acostumada a sempre ser o centro das atenções. Como o Edu não ligou muito para ela, a loira está de recalque – ponderou – Ou ela realmente está preocupada com você. Eu vi aquela troca de olhares durante o jogo... Você está caidinha por ele!

Fiquei encarando o Alê, sem saber se dava razão para ele, se o xingava por me entender tão bem, ou se mandava o skatista calar a boca por ficar falando aquelas coisas em voz alta.

- Ahh, e agora você é o sabe tudo dos relacionamentos amorosos – resolvi mudar o foco do assunto.

- Não precisa ser entendido para sacar isso. Primeiro, você disfarça muito mal. Segundo, te conheço desde criança. Claro que eu ia perceber – ele se gabou, divertindo-se muito com a minha cara.

- Por que a Julieta está emburrada?

- Falando no diabo... – cruzei os braços, ficando ainda mais tensa com a aproximação do carioca.

- Ela está aqui, me implorando para voltar a ser o parceiro dela no truco. Nada pessoal, mas parece que ela não gostou muito de jogar com você, primo... – o Alê assumiu um tom sério, como se realmente tivéssemos discutido o assunto por horas.

- Para! Você só está com medo de perder sua parceira de jogo para o papai aqui – o loiro se gabou, se achando o tal.

Os dois começaram uma discussão sobre quem era melhor no truco e com qual dos dois eu consegui jogar melhor. As vozes ao meu redor, os gritos para aumentar a aposta no balcão, a música, a discussão com a Mari, o Edu, o cansaço do ensaio... Tudo pesou ao mesmo tempo e, de repente, me senti muito velha e cansada – Acho que vou embora – avisei com a voz abatida.

- Quer que eu vá com você? – o carioca se ofereceu de pronto.

- Não, você não! – soltei, sem nem pensar. Eu não precisava de mais boatos para complicar ainda mais a nossa situação – Quer dizer... Você está curtindo a festa, não precisa se incomodar...

- Só uma pergunta – ele levantou o dedo na minha direção – Isso é uma festa?

Não tive como não rir. O clima estava tão parado que o encontro poderia ser chamado de qualquer coisa, menos de festa.

- Relaxa, eu dou uma carona para vocês. Assim o casal não chama a atenção... – Alê provocou antes de lançar um sorriso debochado em nossa direção. Era óbvio que ele estava adorando aquele “climão” entre mim e o seu primo.

Senti meu rosto ficar vermelho de tanta vergonha. Tentei pensar em algo para desconversar, mas tudo o que consegui fazer foi encarar o chão, sem coragem de olhar para o Edu.

- Então vamos logo. Acho que essa pizza já deu o que tinha que dar... – o carioca disse, também parecendo um pouco desconcertado.

As despedidas foram rápidas. Em menos de cinco minutos já estávamos dentro do carro, a caminho de casa. Edu e Alê seguiam na frente, em uma conversa animada sobre música, enquanto eu me joguei no banco de trás, esticando as pernas e encostando o corpo contra a janela. Deixei meus pensamentos voarem longe enquanto borrões de imagens passavam do lado de fora. Não estava a fim de conversa.

No fim, o carioca venceu a conversa e conseguiu colocar em uma rádio que tocava música sertaneja. As vozes de Jorge e Mateus invadiram o carro e me permiti seguir o ritmo da canção, relaxando um pouco.

*** Link para músicahttps://www.youtube.com/watch?v=ICS6uKC93w0 ***

O refrão era animado e gostoso de ouvir, e a melodia era bem dançante. Mexi o corpo, mesmo que involuntariamente, só para ser flagrada pelo Edu que me espiava do banco do passageiro. Consegui sorrir para ele e continuei curtindo a música. Dançar era a única forma que eu conhecia para extravasar os meus sentimentos.

- Chegamos, cambada! – o motorista gritou ao embicar o carro para guardá-lo na garagem.

- Valeu pela carona, Alê! – disse, depois que descemos da Ecosport preta – Boa noite, meninos! Obrigada por me salvarem daquela festa chata – me despedi - do Alê com um beijo e do Edu com dois, como fazem os cariocas.

- Relaxa! A coisa lá estava meio parada mesmo... Acho que prefiro as festas no Gueto – ele arrumou o boné, pensativo – Ainda bem que vocês arrumaram um baralho. Foi o que salvou a noite!

- Foi ideia do seu primo...

- Baralho é a solução para tirar qualquer um do tédio! – o loiro afirmou com o seu jeito prepotente. Eu estava começando a ter dúvidas sobre qual era o mais irritante: ele ou o Caio.

- É verdade mesmo... – concordei só para não aumentar o assunto – Bom, vou indo nessa. Boa noite de novo! – soltei um beijo no ar antes de me virar para ir embora.

- Espera! Eu te acompanho até a sua casa! – Edu se adiantou para não ficar para trás.

- Eduardo vai ao ataque, parte quatro! Ação!

Nós dois olhamos para o Alê ao mesmo tempo, ambos com as expressões sérias e constrangidas. O skatetista apenas nos encarou de volta, um sorriso de zombeteiro nos lábios.

– Qual é? Não falei nada demais... – deu de ombros – Mas só quero deixar uma coisa clara: não quero nem saber o que está rolando entre vocês. Mas a Gabi é a minha parceira de truco, entenderam? Nem adianta vir com mimimi que não aceito trocar... – seu tom era o de alguém negociando algo extremamente importante, tipo um juiz avaliando se alguém é inocente ou culpado por um crime.

- Vai dormir, seu chato! – fingi estar brava, mesmo sem conseguir conter o riso – É claro que sou sua parceira. Isso não está em negociação, ok?

- Sendo assim... Vou deixar os pombinhos a sós – ele fez a última gracinha antes de ir para casa.

E então, éramos só eu, o Edu, e o frio no meu estômago. E agora?

O jeito foi respirar fundo e começar a caminhar. Seguimos em silêncio enquanto minha mente trabalhava a todo vapor tentando pensar em algo para dizer. Será que eu deveria perguntar do beijo? Ou deveria me fingir de desinteressada e puxar um assunto qualquer? E será que ele me beijaria de novo? Ou só diria boa noite e iria embora? Eu olhava de relance em sua direção em busca de respostas, mas sua expressão não me dizia nada. Ele só caminhava ao meu lado, bem próximo de mim, mas sem me tocar. Era algo torturante. Algumas horas atrás ele segurava a minha mão na frente de todos e agora nada?

- E aí? Vai me contar por que está emburrada? – ele perguntou assim que paramos na frente da minha casa.

- Não estou emburrada coisa nenhuma – me defendi, cruzando os braços em frente ao corpo em um gesto muito “maduro” da minha parte. Achei que não seria muito legal falar que o meu principal problema no momento estava parado bem ali, na minha frente.

- Não? Então sempre que está feliz você tenta fugir da festa, depois fica quieta em um canto e convence o Alê a te trazer mais cedo para casa? – o carioca arqueou a sobrancelha, o tom carregado de sarcasmo.

- Em primeiro lugar, aquilo não era exatamente uma festa. E depois, eu estava cansada. Só isso. Ensaiei pesado a semana inteira, nem estava muito a fim de ir. Só fui porque a Carol insistiu e o Alê me ofereceu carona...

- E a apresentação? Quando é?

- Domingo que vem – respondi, surpresa por ele ainda lembrar da nossa última conversa.

- Mas vai dar tudo certo. Tenho certeza – ele sorriu e, de alguma forma, senti que era sincero. Ele realmente queria que tudo desse certo.

De repente o assunto morreu e ficamos um de frente para outro, os olhos cravados nos meus, cada parte do meu corpo pedindo para ele me beijar novamente. Eu não sei quanto se passou, mas a tensão no ar era palpável. Eu conseguia ouvir o meu coração batendo em disparada e cada engrenagem do meu cérebro trabalhando para registrar os mínimos detalhes daquele rosto.

Lembrei do que a Marília disse sobre eu nunca ter me apaixonado. De fato, eu não conhecia aquele sentimento, mas desconfiava que era muito parecido com tudo o que estava acontecendo naquele instante: boca seca, borboletas no estômago, pernas bambas e uma vontade incontrolável de me jogar nos braços dele e não pensar em mais nada.

- Aquela música ficou na minha cabeça... – ele mexeu no cabelo, quebrando o silêncio - “No primeiro instante, vi que era amor...” – começou a cantar com uma voz muito desafinada e mexendo o corpo de forma desengonçada.

- “É que nos meus sonhos você era linda, pessoalmente é mais linda ainda...” – continuou, dessa vez me puxando para dançar junto com ele.

- Nãaao, eu não sei dançar... – protestei, rindo do seu gingado e da péssima voz.

Ele parou de repente, o rosto muito perto de mim - Como não sabe? Não é você que vai fazer uma apresentação top na semana que vem, Julieta? – provocou, antes de me puxar novamente e voltar a dançar.

Deixei me levar pelos seus passos, nossas pernas roçando uma na outra, os corpos colados, um rosto contra o outro.

- “E os anjos cantam o nosso amor...” – ouvi o Edu cantar no meu ouvido, enquanto girávamos e dançávamos pela rua do condomínio, só a lua e as estrelas como testemunhas daquela loucura. Um sorriso enorme se instalou no meu rosto e permaneceu ali, se recusando a ir embora. Dançar nunca foi tão fácil. Eu me sentia tão leve que seria capaz de sair flutuando por aí. Embalada pela felicidade do momento, fechei os olhos e permiti que ele me conduzisse da forma que quisesse.

Com um gesto suave, senti ele deitar o meu corpo me segurando em seus braços e depois me erguer novamente. Quando abri os olhos, estava de frente para ele. A distância entre nós era tão curta que eu sentia o seu hálito contra a minha pele, o brilho dos seus olhos me hipnotizando. Então ele subiu uma das mãos pelo meu braço e passou os dedos no meu rosto, me acariciando com delicadeza. Voltei a fechar os olhos e, sem medo, me curvei em sua direção, encostando os meus lábios nos dele. Uma explosão de sensações aflorou com o nosso beijo e eu não conseguia decifrá-las. Ao mesmo tempo em que era doce e lento, tinha em si uma vontade, algo forte e incontrolável. Passei minhas duas mãos pelos seus ombros e fiquei na ponta dos pés, aproveitando cada instante. O cheiro, o sabor, o toque, o calor da sua pele contrastando com o frio da noite. Parecia um sonho.

Por fim, ele se afastou, dando um último beijo no topo da minha testa. Recusei-me a soltá-lo, com medo que fosse embora novamente sem me dizer nada.

- O que foi? – ele perguntou com a voz baixa acariciando o meu rosto.

Dei uma risada sem graça. Eu não queria que ele percebesse a minha insegurança – Nada. É só que... não queria que você falasse um “boa noite, Gabi” e fosse embora, como da outra vez.

Ele ficou sério, mexendo a boca como alguém que se reprova por algo – É, eu sei... não deveria ter feito aquilo. Na verdade, eu nem deveria ter te beijado. Foi algo precipitado. Nem te conhecia direito, não sabia nada sobre você, se tinha namorado ou alguém... Mas é que... não deu para segurar – ele me deu outro selinho, um sorriso fraco brincando nos seus lábios – Desculpa por semana passada. Por isso pedi para te acompanhar. Queria te explicar o que tinha acontecido...

- E agora? Ainda é precipitado? – questionei com a voz baixa. Minha vontade era de fazer milhões de perguntas, esclarecer todas as dúvidas que atormentavam a minha cabeça. Mas me segurei. Era melhor ir devagar... A ordem de segurar a minha onda ainda estava valendo.

- Não, agora não é mais precipitado... – ele respondeu com os olhos novamente cravados em mim. Depois, com calma, me puxou para junto de si e me beijou, como se o mundo todo estivesse resumido a apenas nós dois.
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Notas finais: Completamente in love com esse momento dos dois. Socorro! Quanto amor, Brasil! Falem aí: aposto que vocês queriam estar no lugar da Gabi, não queriam?

Beijo!

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sexta-feira, 10 de abril de 2015

Capítulo 5 – Tudo acaba em pizza

- Gabriela, está tudo bem? Eu nem te vi chegar... - ouvi minha mãe perguntar. Pelo reflexo do espelho vi que ela estava parada na porta, com o corpo encostado no batente e os olhos fixos em mim. Eu não fazia ideia de há quanto tempo ela estava ali.

- Ahan, está tudo ótimo! - ofereci o meu melhor sorriso amarelo fazendo esforço para realmente parecer bem.

- Então por que você ainda está com a sua mochila nas costas? - ela apontou para a bolsa nos meus ombros onde estavam as roupas que havia levado para a casa da Cá.

Com um movimento rápido, puxei as alças e pousei a peça sobre a pia - Nossa, nem percebi que ela ainda estava aqui - falei em tom indiferente, como se aquela fosse uma atitude completamente normal.

- Huuum... Então tá - ela deu de ombros, preferindo não discutir - Achei um documentário ótimo na internet sobre balé de repertório. O que acha de assistir comigo?

Minha vontade era negar o convite, me jogar na minha cama e passar o resto do domingo tentando entender o que estava acontecendo comigo.

O beijo do Edu me deixara completamente sem chão. Eu não estava esperando por aquela atitude tão... espontânea. E muito menos pela minha reação. Na hora que me beijou, foi como encontrar algo pelo qual sempre procurei. Ao mesmo tempo que era calmo e doce, também tinha força e desejo. Havia cumplicidade, encaixe e entrega. Havia química, muita química... Foi um beijo calmo, sem pressa, como se ele quisesse conhecer o que havia na minha alma. Mas também foi cheio de mistério. Porque, por mais que tenha sido bom – e, aparentemente, ele também tivesse gostado – depois do beijo ele se afastou, disse um simples “tchau, Gabi” e foi embora.

Nem uma explicação, nenhuma palavra, nada. Ou melhor, tudo. Porque agora minha cabeça girava com tantas hipóteses. Ele estava interessado em mim? Ou só estava brincando comigo?

- Terra chamando Gabriela! Terra chamando! - minha mãe estalou os dedos para chamar a minha atenção - Se topar, deixo você pedir comida japonesa.

A proposta me trouxe de volta para o presente. Consegui sorrir, dessa vez de forma um pouco mais sincera, e concordar com a cabeça.

Descemos juntas, fiz o meu pedido pelo telefone e depois nos sentamos do lado de fora da cozinha para comer e comentar sobre o tal documentário.

Nossa casa não era uma mansão, nem nada do tipo, mas era bem confortável. Contava com quatro quartos - um deles transformando em uma espécie de escritório onde minha mãe ficava – e uma cozinha ampla com portas de vidro que davam para um pequeno jardim. Do lado de fora, que chamávamos carinhosamente de varanda, havia uma grande mesa e bancos de madeira. Ali era o nosso lugar predileto para fazer refeições: aconchegante e mais fresco. Um pouquinho mais para o fundo tinha uma piscina pequena que quase nunca era usada - minha mãe não gostava que eu tomasse sol em excesso com medo de prejudicar a minha pele.

Mesmo que não fosse uma casa grande, muitas vezes eu me sentia completamente sozinha ali. Não eram raros os dias que minha mãe se trancava no escritório cuidando dos detalhes da casa ou do trabalho e eu ficava no meu quarto ou na sala, assistindo TV e ouvindo música. Nossa relação era boa. Quer dizer, eu seguia a risca todas as suas ordens e, em troca, tinha algumas regalias como curtir as festas no Gueto, viajar para a casa de praia da Carol e coisas do tipo…

- Olha filha, a leveza que essa bailarina tem... É isso que eu quero quando peço para você se soltar mais... – dona Beatriz comentou, completamente absorta nas imagens.

- Aham... é perfeito mesmo – balancei a cabeça, concordando mesmo sem estar prestando o mínimo de atenção – Mãe, posso ir deitar? Estou me sentindo meio enjoada – menti, tentando me livrar daquela chatice. Eu já tinha coisa demais na cabeça para ficar prestando atenção em leveza de movimentos.

- Ahh Gabriela, andou comendo besteira na casa da Carolina, né? E ainda por cima, pede comida japonesa hoje. Semana que vem vou cuidar de perto da sua dieta, já vou avisando! A estreia está chegando e não posso ter uma Julieta gorda ou enjoada – ela finalmente desviou os olhos da tela do notebook para brigar comigo.

- Tá bom, mãe... Tá bom – não discuti. Apenas subi para o meu quarto, tomei um banho e me deitei. Mas, de novo, não consegui dormir. A festa, a conversa com a Marília, o beijo do Edu, as cobranças da minha mãe... tudo girava na minha cabeça feito um caleidoscópio. Tudo o que queria era fugir para algum lugar longe de toda aquela bagunça. Porém, para onde eu iria?

***
A saída foi me dedicar completamente aos ensaios. Pelo menos, enquanto me esforçava para ser Julieta, eu não precisava me preocupar com os meus outros problemas. Foi desse jeito que evitei falar com as meninas para fugir de perguntas sobre o Edu. Também fiquei longe da casa do Alê, assim não precisaria dar de cara com o carioca.

Segui a risca a dieta da minha mãe, comendo de três em três horas e fiquei até mais tarde nos ensaios todos os dias. Como estávamos há uma semana da estreia, meu parceiro Miguel topou fazer um “intensivo” para chegarmos ao grande dia sem nenhuma chance de errar na coreografia.

A apresentação aconteceria no Teatro Municipal da cidade que, ao contrário de muitos teatros por aí, era um prédio moderno, construído a pouco tempo. A explicação para esse fato era simples: Guararema era cortada pelo rio Paraíba do Sul, o que atraía muitos turistas interessados em almoçar ou passear no parque às margens do rio. Para atrair ainda mais público, o governo municipal passou a investir em eventos culturais. Começou com luzes de Natal e a coisa foi crescendo, crescendo, crescendo... até se transformar em um Festival de Verão reconhecido pelo Brasil inteiro. Foi daí que surgiu a necessidade da criação de espaços que suportassem espetáculos maiores e mais requintados. O resultado foi um prédio com capacidade para receber até 500 pessoas, com camarins e estrutura para suportar uma apresentação de ballet ao som da orquestra sinfônica da cidade. Resumindo: algo top, muito top.
        
    E foi por conta de todo esse “crescimento” que minha mãe foi contratada para ser gestora do festival. O mais irônico disso tudo é que precisei passar por uma seletiva extremamente acirrada para conseguir o papel principal. Porém, como minha mãe era uma das responsáveis pela peça e a “manda-chuva” do evento, todo mundo achava que eu estava ali simplesmente por ser sua filha. Aquele era o maior desafio da minha vida como bailarina e ninguém reconhecia que havia conquistado aquele mérito sozinha. Frustrante. Realmente, frustrante...

- Meninos, acho que por hoje chega, não é? –dona Beatriz interrompeu nosso ensaio, batendo palmas para chamar nossa atenção – Estou muito feliz com o empenho de vocês. Estou certa que a nossa cidade terá o prazer de ver o melhor Romeu e Julieta de suas vidas – o sorriso e o brilho no seu olhar compensavam todo o meu esforço. Ela vivia pela dança, e eu sabia que era somente através de mim que ela conseguia ter acesso a essa paixão. - Vamos, filha! Hora de descansar! Miguel, você quer uma carona? – ela emendou.

- Seria ótimo, dona Beatriz – ele sorriu de forma amável. Aliás, não eu não conhecia ninguém com um coração tão bom quanto o Miguel. Ele sempre levava um sorriso no rosto e nunca reclamava de nada. E olha que a vida dele não era fácil! Os pais não apoiavam sua decisão de dançar balé e os amigos viviam o chamando de “bicha” e todos esses rótulos que um bailarino recebe. Às vezes eu desejava ter essa mesma paz de espírito e determinação. Eu sempre estava preocupada com o que as pessoas iriam pensar ou dizer...

            Minha mãe saiu para buscar o carro no estacionamento e nós dois ficamos arrumando nossas coisas e conversando sobre o ensaio. Estava tão cansada que nem troquei de roupa. Só tirei a sapatilha e fui andando descalça mesma até os fundos do teatro, onde minha mãe nos encontraria. Meu pé latejava e estava cheio de bolhas por conta de tantos ensaios. Mas o cansaço físico me fazia bem. Pelo menos ali eu me sentia inteira, dona da situação, ciente que meu esforço valeria a pena.

            Apaguei assim que entrei no carro. Acordei com minha mãe me cutucando para avisar que estávamos em casa.

            - Vai tomar um banho, vai te fazer bem – ela aconselhou com um tom amável. Eu adorava quando ela me tratava assim.

            Me arrastei até meu quarto, tomei uma ducha e, mal saí do chuveiro quando ouvi meu telefone tocar. Na tela estavam o nome e a foto da Carol. Isso só poderia significar uma coisa: festa no Gueto.

            - Alô – atendi sem muito ânimo.

            - Gabriela, onde você se meteu? Foi abduzida para outra dimensão? Não deu notícias a semana inteira e não apareceu no grupo do Gueto hoje – ela já foi me dando bronca logo de cara.

            - Foi mal! Estou ensaiando pesado essa semana. A apresentação é semana que vem, esqueceu?

            - Ahhh é, verdade! – ela mudou o tom de “amiga abandonada e indignada” para “amiga que entende e compreende os seus problemas” – Mas está tudo indo bem, né? Digo, tenho certeza que a peça vai ser um sucesso...

             - Vai, sim! Estamos nos dedicando muito à apresentação – sorri por conta da sua preocupação.

            - E nós estaremos na primeira fila para te aplaudir – afirmou em tom categórico - Mas já que está assim, tão empenhada, acho que merece uma folguinha... Afinal, todo mundo merece um descanso. Não é só ensaiar, ensaiar e ensaiar... Tem que se divertir um pouco senão você vai ficar louca – a Carol desatou a falar.

               - Eu sei, eu sei... Vou descansar bastante nesse final de semana. Assistir um filme, sei lá...

             - Que tal já começar por hoje? – dava para sentir a animação na sua voz – É que vai rolar uma pizza aqui em casa. Meus pais vão para São Paulo participar de um jantar e pensei em aproveitar a oportunidade. Mas tem que ser light, porque minha irmã está aqui...

            - Sua irmã em casa? Que milagre é esse? – a Alice, irmã da Carol, estudava Moda em São Paulo e nunca parava em Guararema. Era tão difícil encontrá-la por aqui que, quando isso acontecia, todo mundo estranhava. Às vezes eu tinha a impressão que era mais moradora daquela casa do que a própria Alice.
           
              - Pois é... Vai ficar o final de semana inteiro aqui – ela explicou – Mas e aí? Você vem ou não? Toda a galera já confirmou presença e o Alê disse que te dá carona.
          
            Senti um calafrio percorrer o meu corpo. O Edu estaria incluso nesse “toda a galera já confirmou presença”? E se estivesse, o que eu iria fazer? – Hum... Acho que pode ser uma boa - concordei, mesmo me sentindo um pouco apreensiva.

            - Ahh, que ótimo! – ela comemorou – Mas então corre porque você já está atrasada. A Mari e as meninas já estão chegando aqui. Liga para o Alê e combina o horário. Anda logo, Gabi! Beijo! – e ela desligou, sem nem se despedir direito.

            Fui até o espelho e fiquei olhando o meu reflexo, ainda com a toalha enrolada no corpo. Em ocasiões normais, eu colocaria qualquer roupa, prenderia o cabelo em um coque, e iria direto para a casa do Alê. O máximo de “cuidado” que eu teria seria passar desodorante e escovar os dentes. Nada mais do que isso.
           
 Mas e agora? O que eu vestiria? Não queria ir de qualquer jeito, porque não queria correr o risco de encontrar o Edu parecendo uma mulamba. Mas também não poderia me arrumar demais, senão todas as meninas perceberiam que estava afim dele. E considerando que a)elas não sabiam do nosso beijo; b)nós dois não nos falamos depois do domingo, então eu não sabia o que pensar sobre ele; c)ainda tinha aquele papo dele não querer se apegar e estar “na pixta”; era melhor eu não dar bandeira e deixar transparecer que estava afim dele.  Aliás, eu realmente estava afim dele?
         
            Respirei fundo. “Foco, Gabriela. Uma coisa de cada vez”, falei alto para organizar meus pensamentos. Resolvi começar pelo mais simples. Peguei o telefone e liguei para o Alê. Com isso eu descobriria quanto tempo eu teria para me arrumar.

            - Alê, tudo bem?

            - Fala, bonequinha! Tudo certo sim. E você?

            - Cansada por causa dos ensaios, mas bem. E aí, que horas você vai para a casa da Carol? Ela disse que ia rolar uma carona...

            - Então, eu já estou pronto aqui. Você vai demorar muito ainda?

            - Hããã... Eu acabei de sair do banho – falei, bastante sem jeito.

            - Ahh, tranquilo! Eu te espero. Só não vai demorar três horas para se arrumar – ele riu, tentando me zoar.

            - Aaaah, seu lindo! Eu te amo! Pode deixar. Vou me arrumar super rápido e passo aí, beleza?

             - Belezinha, Gabi! Te espero! Beijo!

            Joguei o celular na cama, empolgada. Sem perder tempo, abri todas as portas e gavetas do meu guarda-roupa e comecei a analisar as possibilidades, ao mesmo tempo que passava a toalha pelo corpo para me secar e escolhia uma calcinha e um sutiã para vestir.

            Passei o hidrante corporal em menos de cinco minutos, caprichei no desodorante e escolhi a roupa que gostaria de usar: saia jeans com uns “rasgadinhos”, camisetinha branca e kimono estampado com figuras étincas. Eu adorova essas figuras que lembravam tribos ou etnias. Meu armário estava cheio delas, além do velho e clássico jeans.

            Para fechar, escolhi uma bota sem salto de cano baixo, caprichei no rímel e no delineador, passei um pouco de pós só para dar um “up” e um gloss nude. Graças aos deuses, eu havia lavado o meu cabelo no dia anterior, então ele não estava tão ruim.

            Escolhi um perfume não muito forte, mas também não muito “apagado”, joguei todas as minhas coisas em um bolsa de lado com detalhe em franjas (que eu também amava) e dei uma última checada no espelho: arrumada, bonita e cheirosa sem parecer que fiz muito esforço para isso.

            Missão cumprida!

            Voei até o quarto da dona Beatriz no fim do corredor – Mãe, vou comer pizza na casa da Carol. Vou pegar um carona com o Alê, tá?

            - Pizza, Gabriela? E a sua dieta?
          
            - Só hoje, mãe... - fiz biquinho.

            Ela fez cara feia, mas não disse nada. Como quem cala consente, aproveitei para dar um tchau rápido e disparar novamente pelo corredor, dessa vez em direção à saída.

            Enquanto descia as escadas, senti meu coração ficando apertado. Será que o Edu também estaria me esperando? Me flagrei parada diante da porta, com a mão na maçaneta, imaginando como seria o nosso reencontro. Será que ele me beijaria de novo? Ou fingiria que nada aconteceu?

 “Vai, Gabriela! Força, garota!”

Respirei fundo, abri a porta e sai. Com o coração na boca, caminhei em direção à casa do Alê. Não demorou muito para eu vê-lo andando de skate na rua, sozinho. Experimentei uma sensação estranha. Não dava para saber se era alívio ou tristeza por causa da ausência do carioca.

- Pronta em tempo recorde! – Disse quando me aproximei.

- Fiiuu, fiuuu – ele assoviou para me zuar – A gente vai mesmo para a casa da Carol ou a festa mudou de lugar?
            - Por que? – fiquei apreensiva.

            - Você está toda bonitona...

            - Ahh, nada a ver... – passei a mão no cabelo, tentando disfarçar – Mas tipo assim... está muito exagerado?

- Nãaoo, está linda! – sorriu – É que, geralmente, você vai de chinelo e moletom. Meio largada e tals...

- Aff, seu bobo – fingi ficar brava.

- Entra logo no carro,vai... – ele ria da minha expressão – Senão é capaz da gente chegar e não ter mais pizza.

Embora ainda não tivesse idade, o Alê tinha permissão para pegar o carro, desde que não saísse da cidade, não bebesse e não fizesse loucuras por aí... A mãe dele, dona Melissa, ensinara ele a dirigir há alguns anos. Comparada às outras mães, principalmente a minha, ela era super liberal, amiga e gente boa. Todas as vezes que conversávamos eu tinha impressão de estar falando com uma velha amiga, e não com uma pessoa mais velha, mãe do meu melhor amigo.

Eu adorava andar com o Alê. Ele tinha um gosto musical super eclético e diferenciado. Do sertanejo ao rap, ele ouvia exatamente de tudo, sempre procurando as melhores referências.

- Qual é a banda de hoje? – questionei.

- Banda do Mar. Estou curtindo essa pegada mais “sussa” agora – ele explicou enquanto manobrava o carro para sair da garagem.

Seguimos conversando durante o caminho, mas evitei perguntar do Edu. Mesmo o Alê sendo tranquilo, achei melhor focar na meta da noite: não dar bandeira. Mas consegui “pescar” no meio do papo que o carioca estava com a mãe comprando coisas novas para a casa e que, dependendo do horário, ele passaria na Carol. Claro que meu coração deu um pulo ao ouvir isso, mas mantive minha expressão de garota centrada e controlada.

“Segura esse forninho, Gabriela”, repeti mentalmente tentando me acalmar.

- Nossa, finalmente vocês chegaram! Pensei que nem viessem mais – a Carol nos recebeu assim que chegamos. Ela e o Caio estavam do lado de fora sozinhos e tudo indicava que estavam discutindo a relação.

- E aí, pessoal! Pô Alê, estava mesmo querendo falar com você...Quero  comprar um skate novo e queria trocar umas ideias – o Caio correu na direção do meu amigo, nitidamente agradecido pela nossa chegada. Ele sempre dava um jeito de fugir da Carol quando o assunto ficava sério.
.
- Está tudo bem? – perguntei em tom baixo ao perceber que a cara dela estava péssima.

- Só o mesmo de sempre... A gente está junto faz um tempão, mas não sei o que rola de verdade... E não gosto de ficar “escondido”, ou de ter que segurar a minha barra porque não temos nada sério. É complicado, fico perdida às vezes – ela confessou.

Comecei o meu discurso pronto sobre o tema “Caio, o cafajeste” que abordava três pontos principais:

1 – o quanto ele se achava "a última bolacha do pacote";
2 – a forma como ele não dava valor à minha amiga;
3 – o fato dele sempre conseguir enrolá-la no final das contas (vide o que acabara de acontecer);

Porém, não tive a oportunidade de terminar porque fui interrompida pela Marília.

- Gabriela, como assim você chega e nem vai falar comigo? – a loira gritou vindo na minha direção – Estava esperando por você.

- Nossa, quanto amor! O que aconteceu com você, Mari? – falei em tom de brincadeira. Nosso relacionamento geralmente não contava com demonstrações de amor.

- Tenho uma surpresa para você – ela respondeu fazendo mistério.

- E que surpresa! – a Carol emendou – Olha Gabi, você lembra daquela conversa que a vida não é só ensaiar? Então, acho que essa surpresa vai ajudá-la nesse sentido...

- Com certeza vai ajudar! – a Mari complementou. As duas trocaram olhares de confidência enquanto eu fazia cara de perdida.

- Mas do que diabos vocês estão falando?

- Vem cá, você vai ver – Marília me puxou pelo braço, como ela sempre gostava de fazer, me carregando para dentro. Só paramos quando chegamos em frente à mesa onde dois garotos que eu não conhecia estavam sentados, comendo pizza, bebendo cerveja e conversando.

- Gabi, esses são o Felipe e o Renato. Meninos, essa é a minha amiga, a Gabi – Mari fez as apresentações, com um sorriso pretensioso no rosto.

- Oi – disse, de forma tímida. Por dentro, eu tentava entender o que estava acontecendo ali. Desde quando eu me tornara um produto exposto em uma vitrine para qualquer um chegar e levar?

- Vem, Gabi! Senta aqui! Hoje você pode comer pizza, né? Não vai ficar de frescura por causa da dieta? – a loira voltou a provocar.

Contrariada, me juntei a eles e tentei fazer parte da conversa que estava rolando. Aparentemente, a Marília e a Carol já haviam passado o meu currículo completo para os garotos, porque eles não paravam de disparar perguntar sobre a minha apresentação e todo o resto.

O Felipe, em especial, estava muito empenhado em agradar. Ele não parava de me elogiar, dizendo como eu estava linda, falando que fazia questão de estar no teatro no dia da peça e etc, etc, etc... Estava claro que a Mari, com todo o apoio da Cá, armou aquele encontro “casual” só para me empurrar pra cima daquele menino. E o pior: ele nem fazia o meu estilo! Era alto, magro, com o cabelo castanho curto e um pouco vesgo.

Ok, sei que não deveria julgar as pessoas pela aparência, mas eu não estava nem um pouco interessada em conhecer garotos novos. Eu queria mesmo era saber por onde andava o carioca que roubara o meu sono durante toda a semana...

Lancei um olhar esperançoso em direção à porta, mas ele ainda não havia chegado. Depois olhei ao redor procurando a minha rota de escape que nunca falhava. Mas pelo jeito, aquele era o meu dia de azar, porque o Alê estava ocupado conversando com o Caio. E eu não estava afim de ficar ouvindo as lorotas que aquele garoto chato tinha para falar...

Entediada, comi o meu pedaço de pizza fingindo estar prestando atenção na conversa que rolava na mesa. O foco havia mudado para o começo do ano letivo, escolhas para o vestibular e o cursinho.

Aquela era a minha deixa para fugir. Não queria sacrificar o resto das minhas férias pensando nisso.

- Gente, já volto! Só vou atender o celular – menti, levantando apressada e caminhando em direção à porta, fingindo que estava falando com a minha mãe.

Do lado de fora, soltei o ar e encostei no muro, fechando os olhos por apenas um segundo. Era muita coisa para lidar.

- Você não está na história errada? – uma voz perguntou ao meu lado.

Abri os olhos e dei de cara com o Edu me encarando. Senti meu estômago afundar e uma sensação estranha tomar conta da minha garganta.

- É a Cinderela que foge da festa, e não a Julieta – ele explicou ao perceber que eu não havia entendido a pergunta.

- Acho que estou criando o meu próprio roteiro hoje – respondi com a voz cansada.

- Nossa, pela sua animação, a festa deve estar super animada... – Ele revirou os olhos de forma irônica.
- É... Acho que não estou assim, tão animada...

- Acho que eu posso resolver isso – disse ao estender a mão em um convite silencioso para entrar junto com ele.
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Notas finais: Fingir que está no celular só para fugir de uma conversa chata. Quem nunca? hahaha
E esse rolo da Gabi com o Edu? Vai ou não vai, hein? O que acham?

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