segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Capítulo 23 – O Jogo do Engana Trouxa

Notas inicias: Trilha sonora caprichada porque ó, esse cap tá cheio de novidades!
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- Já conversei com a Cecília. Ela vai ficar de olho em você! Por isso, nem pense em fugir!  E depois da aula, direto para casa! Eu ainda não consegui definir com o seu pai o que vamos fazer com você. Então, por enquanto, você não tem permissão para nada, entendeu? – dona Beatriz deu as ordens como um juiz decreta uma sentença. Eu não conseguia me lembrar de nenhuma outra ocasião na qual ela tenha ficado com a expressão tão fechada e séria. E embora se escondesse por trás de uma máscara de forte, seus olhos denunciavam que ela estava sofrendo. Eu sabia que tinha atingido o seu ponto fraco ao falar do meu pai e tocar na sua experiência do passado.

O peso da nossa discussão ainda estava sobre as minhas costas. Passei a minha vida inteira me esforçando ao máximo para não decepcioná-la e, de repente, jogo tudo fora em uma única briga. Eu não queria magoá-la e sentia muito por tê-lo feito. Porém, por outro lado, se não fosse daquele jeito, talvez eu nunca teria me “libertado”. A vida era realmente muito estranha...

Dei um tchau rápido e desci do carro. Encarei o portão da escola como se enxergasse nele o meu fim. Durante o final de semana foi fácil imaginar o Jogo do Engana Trouxa em ação. Contudo, na prática, o plano parecia muito mais complicado.

Por sorte, ainda era cedo e poucos alunos já haviam chegado ao colégio. Entrei e segui até uma parte bem reservada do pátio, perto de algumas árvores mais afastadas. Eu precisava me concentrar, senão aquilo não iria funcionar.

Peguei meu celular para tentar me distrair, mas não adiantou muito. Acabei lembrando que não tinha falado direito com o Léo naquele final de semana. Ele me avisou que estaria com a Vanessa e, por isso, ficaria off-line para não chamar atenção. Mesmo avisada, senti falta de conversar com ele. Tudo bem que eu sabia desde o início que seria daquele jeito, mas era um pouco mais complicado lidar com isso na prática.

Soltando o ar pesadamente, abri a mochila para pegar o fone e escutar música. Ver as apostilas ali dentro só serviu para me deixar ainda mais pilhada. Eu até tentei colocar a matéria em ordem no final de semana, mas tinha muita coisa atrasada. Eu precisaria de muita dedicação e foco para ficar em dia com a matéria novamente.

De repente fui tomada por uma sensação péssima de que estava no lugar errado na hora errada. Quem eu estava querendo enganar? Eu não tinha mais o que fazer ali. Certo fez o Edu que mudou de escola. Para que ser forte? Para que provar que eu não ligava, quando, na verdade, eu me importava, e muito?

Aos poucos o medo foi dominando os meus pensamentos. Sentia minhas mãos frias e o suor descia pelas minhas costas. A escola ia ganhando vida e eu sabia que precisava me controlar. Já que não havia para onde fugir, eu pelo menos precisava tentar me acalmar. Ficar desesperada não ia ajudar.

Levantando com um pulo, fui até a cantina e pedi a maior barra de chocolate que eles tinham. Comi tudo tão rápido que o atendente me olhava assustado, por mais que tentasse disfarçar.

Assim que terminei, olhei para a embalagem vazia na minha frente sabendo o que viria pela frente. A culpa me invadiu sem pedir licença. Lembrei das batatas fritas que comi no almoço de sexta e de todos os exageros que cometi durante o final de semana. Eu sabia que estava liberada da dieta, mas também não queria virar uma bola.

Coloquei as mãos no rosto, me sentindo confusa demais. Era muita coisa para pensar, muitos sentimentos para lidar. Mais uma vez eu me senti como um balão cheio de mais, prestes a estourar. E eu só conhecia um jeito de me esvaziar...

Corri para o banheiro e entrei no último box. Antes de fechar a porta, me certifiquei que estava sozinha. Depois, coloquei o dedo na garganta e pus tudo para fora. Dei a descarga, abaixei a tampa e me sentei ali, respirando fundo. A sensação de alívio percorreu o meu corpo e me fez relaxar. Meus pensamentos se acalmaram e já não tinha mais a impressão que iria me afogar. Naqueles poucos segundos, eu sabia que tudo acabaria bem. Era como uma droga, que me entorpecia por alguns instantes e mandava todo o resto embora. Um escudo que me protegia de mim mesma.

Pena que durava tão pouco... Eu quase podia sentir as ondas de medo e insegurança querendo me arrastar novamente para onde eu não queria ir quando o telefone tocou.

“Onde você está? Já rodei esse colégio inteiro e não te acho em lugar nenhum”

Graças a Deus, era o Alê!

“Estou no banheiro aqui de debaixo”

“Não sai daí. Estou indo te encontrar”.

Fiquei de pé e ajeitei meu cabelo. Fiquei em silêncio esperando para ver se havia alguém no banheiro. Por sorte, estava vazio. Saí e escovei o dente antes que alguém chegasse. Me esforcei para fazer uma cara de quem não estava nem aí para nada. Ao passar pela porta dei de cara com duas garotas. Institivamente abaixei a cabeça. Acabei ouvindo elas rindo baixinho. Ok, isso não seria nada fácil...

- Nossa, que cara de limão azedo é essa? Está fazendo papel do que? Da mocinha sofredora? – O Alê me provocou assim que me viu.

- Papel de quem quer ir embora daqui – respondi, cruzando os braços em frente ao corpo.

Ele me encarou por alguns segundos como se estivesse pensando no que fazer. Na certa, lidar com garotas mimadas não era a especialidade do meu amigo.

- Olha Gabi, esses dias eu estava conversando com uma garota que conheci em um grupo do Whats e, bem... Você não precisa saber dos detalhes, mas ela me enviou uma música que me fez lembrar de você – ele mexeu no celular até encontrar o que estava procurando e depois aproximou o aparelho do meu ouvido.

*** Link para músicahttps://www.youtube.com/watch?v=cfE_AXPoqJE ***

Era uma canção lenta, apenas voz e violão. Não precisei ouvir mais que quatro estrofes para entender porque o Alê associou a canção a mim. A letra parecia feita para mim.

Cadê aquela garota
Que contagiava o mundo ao seu redor?
Aonde foi parar a sua vontade de sonhar
E dar pra vida o seu melhor?

Se ele te deixou não vai valer a pena
Dar suas lágrimas pra alguém sem nenhum valor

O erro não é seu
Ele quem perdeu
Anjo quebrado se ergue pra um novo amor
Um novo amor

Eu vim aqui pra fazer
Você voar outra vez
Darei meu ar pra você respirar
Meu sonho pra você sonhar
Não chore nunca mais, meu anjo, porque hoje
Eu vim aqui pra fazer
Você voar outra vez

- Não sei porque ela achou que iria me conquistar com isso, mas... – ele deu de ombros, tentando descontrair ao perceber que estava prestes a chorar. Eu não sabia explicar, mas algo naquela música me tocou profundamente. Era como se algo na minha alma, que eu acreditava estar morto, reagisse e voltasse a pulsar.

Não falei nada, apenas o abracei forte, descansando minha cabeça no seu ombro. Ficamos assim por uns dois minutos, ignorando as pessoas que passavam e nos encaravam sem saber o que estava acontecendo. Quando o soltei, me sentia bem mais calma e confiante.

- Essa é a minha garota – ele riu – Pronta para começar o jogo?

- Mais do que preparada – assenti com a cabeça.

- Perfeito! Então, lá vai outra música para inspirá-la – voltou a mexer no celular. Na sequência, um rock pesado começou a soar.


- Estamos na estrada para o inferno? – arqueei a sobrancelha.

- E tem definição melhor?

- Não, realmente não tem ri do comentário irônico.

Subimos a escada rindo e brincando com essa nova habilidade do meu amigo de achar trilha sonora para todos os momentos da minha vida. Eu ainda estava sorrindo quando entrei na sala, e assim que dei de cara com a Mari e suas amigas, me esforcei para continuar rindo, como se tivesse acabado de ouvir a melhor piada do mundo.

Pelo canto do olho vi as garotas trocando olhares, como se não estivessem entendendo a minha reação.

- Ponto para o Time B! – o Alê sussurrou assim que nos sentamos no fundo da sala.

Ergui a mão para um hi-five. Talvez o Jogo do Engana Trouxa pudesse realmente funcionar.

***

O dia passou mais devagar do que eu desejava, porém menos dolorido do que imaginei. Na verdade, em alguns momentos até posso dizer que foi engraçado. Eu e o Alê passamos nossos momentos livres discutindo o roteiro do seu primeiro vídeo para o vlog, o que rendeu várias piadas e comentários irônicos.

O skatista queria começar seu vlog fazendo uma breve apresentação de quem era e falando o quanto é difícil ser diferente em um mundo onde todos quererem ser iguais. A ideia era fazer uma crítica ao comportamento da maioria dos jovens, mas de forma descontraída e, principalmente, engraçada. Para isso, começamos a bolar exemplos de situações que ele poderia citar durante o vídeo.

“Podemos falar dessa mania que vocês garotas tem de se vestir igual. Por exemplo, quando tem festa no Gueto e todas as meninas vão com aquelas saias justinhas e blusas mais soltinhas, sabe? Parece até que todo mundo combinou”

. Meu amigo escreveu em uma folha e me passou no meio da aula de matemática.

“Ótima ideia. Seria ainda melhor se você vestisse uma saia para tornar a coisa toda mais real. Se quiser, posso te emprestar uma...”

Repassei o bilhete. Assim que leu, o Alê abafou uma gargalhada, que fez a sala inteira olhar para gente de um jeito desconfiado.

“Pô Gabi, já está difícil pegar mulher, imagina se eu comprometer minha masculinidade desse jeito? Como é que fica? Lembra que o nome do vlog é “um vida loca” e não um “travesti louco”

Ele respondeu, esforçando-se para segurar o riso.

Você que pensa! Vai chover menina querendo falar com você. Sobre conselhos de moda, é claro...”.

E assim seguimos pelo resto das aulas. Confesso que não foquei muito no conteúdo das matérias, mas a parte que tinha prestado atenção já seria o suficiente para fazer os deveres de casa. Bom, pelo menos era o que eu achava...

No final do dia, próximos ao portão de saída, algumas garotas me olharam de um jeito estranho e começaram a fazer comentários em voz baixa. Consegui captar algumas palavras como “Edu”, “coitada” e “fora”. Imaginei que estavam sentindo pena de mim por tudo o que aconteceu. Rapidamente, tentei buscar na minha mente o que eu poderia fazer para reverter aquela situação.

  Agindo rapidamente, peguei o celular e fingi estar recebendo uma chamada.

  “Alô? Oi, amor! Tudo bem? Hoje? Huuumm.... Acho que dá sim. Vou ver e te ligo mais tarde, pode ser? Beleza! Beijo, lindo! Saudades! Beijo, beijooo. Prometo que vou tentar. Até mais, amor”.

  A cada frase, eu mexia o cabelo e fazia caras e bocas, como se estivesse conversando com um garoto completamente apaixonado e que estava louco para me ver. Ao meu lado, Alê olhava para cima, segurando o riso enquanto as meninas passavam por nós com expressões confusas nos rostos. Com certeza elas imaginavam encontrar uma pessoa triste por causa do lance com o Edu. Imaginar que eu estava bem e que a fila já tinha andado foi uma baita surpresa para elas.

- Mandou bem nessa, Gabs – meu amigo disse em meio a gargalhadas – Desse jeito você vai virar uma lenda nesse colégio. Vão inventar tantas histórias que ninguém mais vai saber qual é a verdade.

- Mérito seu que teve a ideia brilhante de criar esse jogo – pisquei para ele.

Seguimos para a minha casa onde almoçamos juntos. Assim que abri a porta vi a Maria no telefone confirmando para minha mãe que já estava de volta.

- Dona Beatriz está fazendo marcação cerrada – a diarista disse assim que encerrou a ligação.

- É bom mesmo ela marcar em cima, porque a Gabi anda terrível...

- Alexandre! – fiz cara de inconformada para o skatista – Como assim?

- Ué, tenho culpa se você passou de boneca de porcelana para Monster High? – provocou.

Soltei o ar pesadamente, fingindo estar brava – Senta logo nessa mesa e come, Alê. Antes que eu te bote pra correr daqui!

- Não disse que ela anda terrível? – apontou para mim em tom irônico, fazendo a Maria quase morrer de rir.

Assim que acalmamos os ânimos, a Maria começou a falar o que tínhamos para o almoço: estrogonofe de frango, batata palha, arroz branco e salada de brócolis.

Não demorou nem cinco minutos para o Alê começar a devorar o seu prato, mas eu acabei me vendo em um dilema: já tinha vomitado de manhã e comido mal na hora do intervalo. Não queria deixar de almoçar, mas também não queria exagerar...

- Que foi, Gabi? Esqueceu que não está mais de dieta? – o skatista perguntou com a boca cheia, o que fez sua voz sair meio enrolada.

- Não, é que... não sei... Só não quero comer demais para não engordar – falei.

- Relaxa, menina! Come tranquila! Depois você pensa nisso – a Mary interviu.

Acabei pegando bastante salada e um pouco de strogonoff, que por sinal estava delicioso.Enquanto comia, comecei a considerar a hipótese de fazer uma caminhada pelo condomínio para queimar algumas calorias.

Depois do almoço, subimos para o meu quarto para gravar o primeiro vídeo do Alê e estudar. Ensaiamos o texto algumas vezes, escolhemos um ponto do meu quarto para o cenário não ficasse feminino demais e me posicionei com o celular na mão pronto para gravar.

- No três, hein? – avisei – Um, dois, três! Vai!

“E aêêêee garotos e garotas desse Brasil, como vão? Para quem não me conhece, sou Alexandre Aguiar, mais conhecido como Alê. Sou um adolescente normal de 17 anos, que estuda, sai com os amigos, anda de skate, curte ouvir música e essas coisas que todo jovem da nossa idade curte fazer....”

Nessa hora ele parou, olhou sério para câmera como se estivesse refletindo antes de continuar.

“Ou melhor, talvez nem tãooo normal assim... Não! Calma! Não estou dizendo que tenho manias estranhas, tipo dormir de edredom com o ventilador ligado – isso, aliás, eu realmente faço. É que tem algumas manias que o pessoal da nossa idade faz que eu simplesmente não entendo. Juro que não faz sentido pra mim! Por exemplo, por que todas as meninas insistem em andar em bando, em tirar juntas em todos os lugares, principalmente no banheiro, para depois saírem falando mal uma das outras? Tipo, qual é o sentido disso? Espalham aos quatro cantos que são como irmãs e depois, do nada, viram a cara umas pras outras e ficam falando ‘aquela vaca’, vadia...’”

Fez uma pausa, levantando os ombros e mexendo as mãos, fazendo uma cara engraçada para a câmera. Precisei controlar o riso, afinal, sabia que aquilo era uma provocação para a Mari e suas amiguinhas.

“Ou porque todas as meninas insistem e dizer que são independentes, donas do próprio nariz e tal, mas ficam bravas se um menino não toma a atitude na hora que rola um clima. ‘Helloooo’, sabiam que já estamos no século 21? Vocês já podem chegar junto e falar que estão afim sem correr o risco de perder a honra. Eu tenho um segredo para revelar a vocês” – fez mais uma pausa dramática antes de continuar – “Vocês não são donzelas indefesas. Sei que pode ser um pouco chocante, mas é a verdade. Lidem com isso.

Mas acho que o pior são aquelas pessoas que ficam fazendo snap de tudo o que acontece no seu dia. Você pega o celular e tem um vídeo de não sei quantos segundos da pessoa falando sobre... nada! Cara, como assim? Sério mesmo que você acha tão necessário assim compartilhar que a sua vida é um tédio? Desculpa, mas eu não sou obrigado!

Enfim, são todos esses ‘mistérios’ que vou comentar por aqui e tentar achar uma razão do porquê tudo isso acontece e, claro, zuar essas bobeiras que a gente faz porque todo mundo sabe: a zueira não tem limites!

Então ‘bora’ acompanhar o vlog desse vida loca que nem é tão louco assim. Ou talvez seja, não sei... Isso deixo a critério de vocês. É isso, beijo para as garotas bonitas e até a próxima, pessoal!”.

Ele se despediu e eu apertei o botão para encerrar o vídeo. Claro que o Alê correu para o meu lado para ver como tinha ficado. Avaliamos o resultado final juntos. Eu não conseguia parar de rir das caras e bocas que ele fez para a tela. O skatista mexia as mãos e o corpo de um jeito naturalmente engraçado. Isso sem falar nos comentários irônicos e indiretas - do tipo bem diretas - que tinham destino mais do que certos. O comentário do Snap Chat, por exemplo, foi inspirado na Nathália, que adorava postar sua “adorável” rotinha que consistia em, basicamente, ir à escola, ver TV e ficar no Whats. Péssimo!

- Será que vamos gerar polêmica? – ele me perguntou com um brilho travesso nos olhos.

- Acho que o Time B vai dar o troco em grande estilo – sorri, convencida.

Acabamos gravando mais algumas vezes só para ter certeza que o resultado ficaria bom. No final, editamos o conteúdo deixando alguns erros e cenas de “makking off” de propósito para deixar tudo com um ar ainda mais engraçado.

Depois do vídeo pronto, subimos para o Youtube e gravamos snaps avisando os amigos que o vlog do Alê estava oficialmente no ar. Também postamos no Instagram e Face, para aumentar a divulgação.
Enquanto esperávamos que o vídeo se espalhasse por aí, dedicamos algum tempo a fazer os deveres do dia. O Alê não era nem de longe a melhor companhia para estudar, mas ele se esforçou e tentou me ajudar a colocar a matéria em dia.

Já era quase sete da noite quando meu amigo foi para casa. Dona Beatriz já havia chegado e ido direto para o quarto, com cara de poucos amigos. Eu sabia que estava chateada pelo simples fato de ter ligado música clássica em volume alto. Era o que ela sempre fazia quando queria esquecer os problemas: se trancava e ficava relembrando seus tempos de glória como bailarina.

Estava parada no corredor, tentando lidar com aquele turbilhão de sentimentos que a briga com a minha mãe despertavam em mim quando senti o telefone vibrar no meu bolso.

“Estou perto do seu condomínio. Será que posso dar um pulo aí para te ver, Gá?”.

Meu coração deu um pulo ao ler a mensagem do Léo. Me surpreendi ao perceber que estava com muitas saudades do meu “cabeludinho”.

“Claro. Vou autorizar sua entrada na portaria”.

Respondi de imediato, com um sorriso de orelha a orelha estampado no rosto. Estava mais que na hora de tomar minha dose instantânea de felicidade.

Desci correndo para a cozinha. Assim que tirei o interfone do gancho, parei, encarando a parede de piso branco na minha frente. Eu estava de castigo. Logo, muito provavelmente, também deveria estar proibida de receber visitas. E se o pessoal da segurança contasse para a minha mãe que um garoto veio me ver? Ela já estava bem brava comigo pelo lance com o Edu, sem dúvidas aquele não era o melhor momento de apresentar o Léo para Dona Beatriz.

Desbloqueei o celular e disquei para o Alê. Três toques depois ele atendeu.

- Já está com saudades?

- Preciso de um favor – pedi, curta e grossa.

- O que você está aprontando, Monster High? – ele provocou do outro lado.

- Preciso que você ligue para a portaria e autorize a entrada do Leonardo.

- E por que eu autorizaria a entrada desse tal Leonardo? – perguntou com a voz séria.

- Porque eu estou pedindo, ué – falei, dando de ombros mesmo sabendo que ele não estava me vendo.

- Gabriela, Gabriela... Tem certeza disso? – ele tentou esconder, mas consegui sentir a preocupação em sua voz. Na certa estava com medo que eu me machucasse de novo.

- Pode confiar, Alê – afirmei com um sorrisinho bobo no rosto. Eu adorava quando ele se importava comigo.

- Ok, vou autorizar. Mas ó... qualquer coisa você grita. Conheço pessoas quem conhecem pessoas que podem dar um jeito nesse tal Leonardo rapidinho – claro que ele não ia perder a chance de fazer piada.

- Sim senhor, comandante. Fico te devendo essa.

- Você já está me devendo muitas, garota. Tenho dó quando eu resolver cobrar – ameaçou em tom brincalhão.

- Faz o seguinte... Vai marcando na conta, aí. Qualquer dia a gente se acerta. Mas agora vai logo fazer o que te pedi – falei no maior jeito “mãe mandando limpar o quarto”.

- E ainda tenho que aguentar isso... Olha, não é fácil ser eu, viu? Estou indo lá, beijo Gabi – desligou fingindo estar bravo comigo. Ele pensava que me enganava, mas eu sabia que era só pose.

Voltei para o meu quarto correndo e tratei de dar um “trato” no meu visual. Fiz o melhor que pude sem demorar demais: passei desodorante e perfume, troquei a blusa que estava vestindo, escolhi um batom de cor suave e disparei novamente pelo corredor, dessa vez só parando próximo a portaria. O Léo já havia entrado no condomínio e esperava sentado em um banco ao lado. Gesticulei de longe para que ele viesse me encontrar, torcendo para que nenhum segurança me visse.

- Por que você está mexendo os braços feito um bonecão de posto? – foi a primeira coisa que disse quando chegou perto.

- Porque não quero chamar atenção do pessoal da portaria – expliquei já apertando o passo para sair logo dali.

- Então por que não me ligou, ou mandou mensagem no Whats me explicando o caminho? Eu poderia ir sozinho, sabe... Já disse que não sou apenas um rostinho bonito – falou ao mesmo tempo que me oferecia um sorriso zombeteiro.

Dei de ombros, fingindo não me importar com a minha falta de perspicácia – Vou notar a sugestão para a próxima vez...

- Ai, ai Gabriela, o que você faria sem mim? – brincou, colocando a mão na minha cintura – Acho que aqui estamos seguros, né?

- Acho melhor não confiarmos ainda. Minha mãe anda meio brava comigo, me deixou de castigo e estou com medo de ter colocado os seguranças para me vigiar. Por isso não quero dar bobeira. Acho que dona Beatriz não está pronta para saber que estou com um garoto – expliquei, tentando manter o tom de voz leve para não assustá-lo.

- Ok, Julieta. Não quero chamar a atenção da oposição  – tirou a mão de forma teatral, o que me fez rir.

- Calma, você já vai poder tirar uma casquinha de mim – pisquei para provocá-lo.

- E posso saber para onde você está me levando? – olhou ao redor como se só agora se desse conta de onde estava.

- Para a minha casa, oras.

- Olha só, quem está querendo tirar uma casquinha de quem aqui? – levantou a sobrancelha, zombeteiro.

- Só estou pensando na nossa discrição... Essa não é uma cláusula do nosso contrato? – encarei seus olhos, me sentindo a dona da verdade.

- Sei não, acho que você está querendo abusar desse pobre garoto inocente... – devolveu o meu olhar, fazendo-se de indefeso.

Continuamos brincando até chegarmos à porta de casa.

- Ok, preciso que você faça silêncio até o meu quarto. Vou falar para a minha mãe que você é o meu amigo Alê, entendeu? – ditei as regras.

- Hum... quer dizer que esse Alê tem passe livre para o seu quarto? Será que eu deveria ficar preocupado com isso? – colocou a mão no queixo, analisando a situação.

- Não, o Alê é o irmão que eu não tive – expliquei.

- Então não quero ser esse cara. Não estou nem um pouco interessado em ser seu irmão – piscou, seu melhor sorriso provocante no rosto.

- É só para despistar minha mãe, seu bobo – dei um tapa no seu ombro, rindo – Vem, logo.

Entramos em casa em silêncio. Subimos as escadas de mãos dadas e o conduzi até o meu quarto no final do corredor.

- Espera aqui – pedi, antes de fechar a porta.

Fui até o quarto da minha mãe e bati na porta. Quando abriu, me encarou com um olhar sério e magoado.

- Só para avisar que o Alê voltou para me ajudar com os trabalhos da escola Não estou conseguindo fazer tudo sozinha – menti.

- Bom mesmo, porque a Cecília disse que sua situação está crítica – seu tom era frio – E é bom você ficar acordada até mais tarde mesmo. Vamos conversar lá pelas... – fez uma pausa para consultar o relógio no seu punho – onze...

Franzi a testa, sem entender nada.

- Na hora certa você vai saber – disse com jeito de quem encerra a conversa.

- Ok, então... – aceitei que não conseguiria mais nenhuma informação. Acenei para sinalizar que estava de saída e voltei para o meu quarto. Quando cheguei lá, o Léo estava de pé, andando devagar, olhando para cada detalhe.

- Quarto legal – comentou quando me viu – Parece uma casa de boneca.

- Você não é a primeira pessoa que fala isso – revirei os olhos antes de me jogar na cama e tirar os chinelos. A tal conversa que minha mãe disse que aconteceria às onze ainda estava na minha cabeça.

- E então, como foi voltar à escola depois de passar pelo retiro? Sentiu muitas saudades minhas? – ele sentou na cama perto de mim e se ocupou em brincar com uma mecha do meu cabelo.

- Olha, aconteceu tanta coisa desde o fim do retiro que nem parece que só fazem três dias que não nos vemos... – comentei com um tom de voz cansado.

- Olha só, quer dizer que não pensou em mim nem um pouquinho assim... – usou o polegar e o indicador para simbolizar algo pequeno – Espero que a senhorita tenha um bom motivo para isso – me lançou um olhar acusatório antes de dar um sorriso que indicava que tudo não passava de brincadeira.

- Minha mãe descobriu que eu estava cabulando aula – contei – Além de algumas outras coisinhas...

- Caramba! E mesmo assim você me chama para entrar? Ela deve estar me odiando por te levar para o mal caminho...

- Relaxa! Eu não falei para ela onde nem com quem eu estava – o acalmei – Na verdade, acho que ela ficou muito mais nervosa com as outras coisas do que com isso.

- Hum... E que tipo de coisas? – quis saber.

- Bom, além de descobrir que fugi da escola, minha mãe tomou conhecimento de algumas coisinhas que aconteceram antes. Aí brigamos feio e, no meio da discussão, eu disse que não queria mais dançar balé e que estava pensando em ir morar em Nova York com meu pai – fiz um resumo, escondendo propositalmente a parte que envolvia o Edu, Mari e companhia.

Léo ficou me encarando por um momento longo, como se não soubesse o que dizer. Quando por fim falou, um brilho de mistério cintilava em seu olhar – Sabia que seu nome significa “enviada de Deus” e o meu “presente de Deus”. Acho que isso faz de nós pessoas divinas – disse em tom brincalhão.

Enruguei a testa, sem entender muito bem o comentário. Mesmo assim, resolvi entrar no clima da brincadeira - Ou talvez anjos...

- Não, isso não! Anjos voam e você tem medo de voar – ele me provocou.

- Quem foi que disse isso? – fiz cara de ofendida.

- Um passarinho verde me contou que alguém machucou suas asas...

- E o que mais esse passarinho intrometido disse? – quis saber. Estremeci só de imaginar o que ele pensaria se soubesse tudo o que aconteceu comigo.

         - Que você é um belo pássaro e que vai voar para muito longe ainda – ele mexeu a mão como se quisesse indicar um lugar distante – a minha sorte é que não tenho medo de voos longos. E a sua sorte é que eu sou muito bom em voar.

Levantei da cama e me sentei na sua frente. Não estava entendendo nada daquele papo filosófico – Do que diabos você está falando?

- Primeiro, que eu sei quais foram essas “coisinhas” que aconteceram antes no colégio – anunciou como se não fosse nada demais.

Fiquei parada, sem saber o que fazer ou falar. Será que ele também me viraria as costas?

- O Caio me contou no primeiro dia de retiro – explicou, como se estivesse lendo minha mente – Em defesa dele, eu meio que o forcei a falar. Ele não queria espalhar o seu segredo, mas eu estava curioso demais para entender porque uma garota tão linda carregava um sombra tão negra no olhar – apressou-se em explicar – Eu sei o quanto está machucada, e é por isso que acho que não vai a lugar algum agora. Você tem muita coisa para colocar em ordem por aqui – pousou seus olhos azuis em mim, como se me desafiasse a discordar das suas palavras. Fiquei espantada com seu jeito maduro de falar. Não era a toa que ele desejava ser escritor. O garoto realmente era bom com as palavras – Mas também sei que isso não vai durar para sempre. Todo mundo passa pelo vazio antes de alcançar a luz. Suas asas vão se recuperar e você vai voar para muito longe ainda. E é como eu disse, a sua sorte é que não tenho medo de voos longos. Nova York, Madrid, Londres... Tanto faz – deu de ombros, como se a distância não fosse nada demais.

Continuei parada, encarando aquele par de olhos azuis enquanto absorvia tudo o que o Léo acabara de me dizer. Um alívio imenso tomou conta de mim só de saber que ele não me julgava como as outras pessoas. Senti um calor diferente queimar no meu peito, como saber que ele acreditava em mim me tornasse mais forte. Acho que nem nos meus sonhos mais ambiciosos eu me imaginei “voando tão alto” quanto as palavras dele me fizeram acreditar que seria capaz.

- Você disse que não sabia... – lembrei do encontro no shopping quando fechamos o nosso acordo. Um resquício teimoso de vergonha insistia em deixar minha garganta seca e revirar meu estômago.

- Prometi para o Caio que não contaria. Mas hoje, ouvindo você falar que iria para tão longe, sei lá... senti uma coisa estranha. Acho que foi por isso que me empenhei nesse discurso tão bonito. No fundo, só queria disfarçar meu medo bobo de te perder – baixou os olhos, sem jeito, o azul do seu olhar tão intenso que foi capaz de me tirar o fôlego.

- Ah, seu bobo! – me estiquei na cama para abraçá-lo – isso é só uma possibilidade. Eu ainda nem falei com o meu pai. Na verdade, eu mal o conheço. Não sei isso realmente vai acontecer. Provavelmente eu desista, ou minha mãe deixe de ser tão durona e me perdoe, sei lá... muita coisa pode acontecer ainda – expliquei enquanto aproximava meus lábios do dele. Quando terminei de falar, o beijei lentamente, como se quisesse que o nosso contato o tranquilizasse.

- De qualquer forma, já sabe minha opinião sobre isso – disse, entre os beijos – Pode ir para onde quiser, que vou atrás de você.

Com jeito, ele me virou na cama, posicionando-se sobre mim. Ao longe, uma música lenta ecoava do quarto da minha mãe. Senti suas mãos deslizarem por dentro da minha blusa enquanto me beijava de uma maneira intensa. Permiti que ele explorasse meu corpo enquanto seus beijos exigiam cada vez mais de mim. Ele me segurava com força, mas sem nunca me machucar. Na verdade, nossos abraços pareciam um misto de vontade de estar junto, desejo e  saudade, tudo intensificado pelas condições do nosso contrato que não nos permitia manter contato sempre que queríamos.

Porém, quando ele tentou tirar a minha blusa, não consegui continuar.

- Não, espera – disse, tentando me desfazer do seu abraço de forma estabanada.

- O que foi? – perguntou, recusando-se a me soltar.

- Eu... eu... – não consegui completar a frase. No fundo, não queria admitir que a experiência com o Edu ainda estava viva na minha mente.

Novamente, não precisei dizer nenhuma palavra para que ele me entendesse – Relaxa Gabi, relaxa... – me abraçou mais forte para me acalmar – Foi só uma empolgação momentânea. Já passou, já passou... – sussurrou no meu ouvido, esforçando-se para controlar a respiração. De onde estava eu conseguia sentir o seu coração batendo tão forte quanto o meu.

Ficamos quietos por um tempo, sem falar ou se mexer. Aos poucos fui sentindo o calor dele tomar conta do meu corpo, e me aconcheguei contra o seu peito enquanto sentia suas mãos acariciarem as minhas de leve.

- É tão fácil entender você – falei baixinho, como se tivesse medo de quebrar o encanto do momento.

- É porque não tenho medo de me mostrar como realmente sou...

- Gente, acho que vou te apresentar para o Alê. Vocês dois pensam do mesmo jeito – ri, me virando para encarar o seu rosto – Todo esse lance de ser você mesmo e tals...

- Ah, então você quer me apresentar para os seus amigos? Acho que isso é o primeiro sinal que o nosso lance está ficando sério, não é? – se gabou.

- Ai meu Deus, como você é convencido...

- Convencido, não. Apenas confio no meu taco – espreguiçou-se como um gato, cheio de calma.

-  Huum... Quero ver você manter toda essa pose se minha mãe aparecer aqui – provoquei – Falando nisso... Nossa, já são quase onze horas. Melhor você ir. Dona Beatriz disse que vamos conversar daqui a pouco... – avisei depois que peguei meu celular e chequei as horas. Eram 22h40.

- Eu disse que confiava no meu taco, não que era louco. Onde fica a saída mesmo? – disse, ficando de pé em um pulo e ajeitando as roupas.

- Vem, vou te levar pelos fundos – o apressei enquanto ele calçava os sapatos. Eu nem tinha percebido que ele tinha tirado os tênis.

Descemos em silêncio e de mãos dadas de novo. Porém, dessa vez passamos pela cozinha, demos a volta pela garagem e saímos cortando caminho pelo jardim do vizinho. Ao olhar para trás, vi que um táxi estava estacionando na frente de casa.

- Nossa, quem será que está chegando agora? – questionei em voz alta, mais para mim mesma do que para o Léo.

- Será que sua mãe precisou pedir reforços para tentar te colocar na linha de novo? – o cabeludo provocou.

- Nossa, quem vê pensa que sou um caso sem solução... – revirei os olhos.

- Olha, não diria sem solução. Nada que uns ajustes aqui ou ali não possam dar jeito – disse, ao mesmo tempo que fazia cosquinha na minha barriga me fazendo rir.

- Para com isso, seu chato – me debati, em vão.

Ele então segurou as minhas duas mãos atrás das minhas costas e chegou bem perto, falando em meu ouvido como quem conta um segredo – É sério, não precisa mexer em nada. Não importa o que o que aquele cara idiota fez ou o que as pessoas disseram. Você é encantadora do jeito que é, entendeu? Esse passarinho lindo que ainda não aprendeu a voar – Com um gesto rápido, ele me soltou e me deu um beijo carinhoso na testa – Agora vai, antes que sua mãe ache que você fugiu de casa – disse, batendo de leve no meu braço para me apressar.

Sem tempo de agradecer as palavras ou me despedir direito, disparei de volta para casa, o coração sambando dentro do peito mais que uma mulata de escola de samba. Gente, da onde o Léo tinha saído? Era possível que um garoto desses existisse de verdade?

Foi com esses pensamentos e caminhando como se estivesse flutuando na lua que abri a porta de casa e dei de cara com a minha mãe. Ao seu lado estava um cara com seus quarenta e tantos anos, olhar curioso e look impecável: camisa lisa, calça social e sapatos lustrosos. Ao lado da entrada duas malas indicavam que o senhor viera pronto para passar alguns dias.

- Onde você estava, Gabriela? – dona Beatriz cortou o silêncio.

 - Acompanhei o Alê até a casa dele – menti. Estava ficando muito, muito boa naquilo.

- Já disse que está de castigo e não pode sair. Se bem que... – mexeu o corpo, desconfortável – Esse problema em breve estará solucionado. Você não queria morar em Nova York? Então já podemos cuidar de todos os detalhes da mudança com o seu pai – vi minha mãe apontar para o senhor ao lado dela e quase cai para trás de susto.

Então aquele era meu pai?
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Notas finais: Ok, vamos por partes:
1 – Alê sambando na cara do recalque com aquele vlog bafônico. A-DO-RO! Arrasou!
2 – Gabi ousada levando o Léo para o quarto. Virou Monster High mesmo essa menina! Hahahaha
3 – Falando em Léo, onde compra um desses, gente? Fofo demaaaaaais! Alguém mais estranhou que Leonardo não significa “presente de Deus” como ele disse? Calma, teremos explicações no próximo capítulo.
4 – E o Jogo do Engana Trouxa? Eu ri com a Gabi fazendo encenações e ameeeeei a trilha sonora. O que acharam?
5 – Gabi vomitou de novo. Ficando preocupada, viu?
6 – Genteeee, e esse pai? Socorro! Será que ela vai mesmo para NY?
Ai que a coisa está ficando bapho demais, hein? O que acharam?
Beijo e prometo que agora consigo voltar a postar no ritmo normal. Se cuidem, garotas!


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