*** Início da terceira fase:
Preparar para decolar ***
[“Tenho andado
distraído
Impaciente e
indeciso
E ainda estou
confuso
Só que agora é
diferente
Estou tão
tranquilo
E tão contente
Quantas chances
desperdicei
Quando o que eu
mais queria
Era provar pra
todo o mundo
Que eu não
precisava
Provar nada pra
ninguém
Me fiz em mil
pedaços
Pra você juntar
E queria sempre
achar
Explicação pro
que eu sentia
Como um anjo
caído
Fiz questão de
esquecer
Que mentir pra
si mesmo
É sempre a pior mentira” – Quase sem querer, Legião Urbana]
A plateia estava lotada e todas as luzes estavam sob mim. Eu dançava com os olhos fechados, consciente dos meus movimentos, brincando com o ritmo da canção. De repente a música ficava mais intensa e eu precisava acelerar os passos para acompanhá-la. Eu me esforçava para fazer os movimentos com precisão e, mesmo assim, sentia que não estava conseguindo dar o melhor de mim. Faltava algo. Em uma sequência de piruetas, senti meu corpo alcançando o seu máximo. A cada novo giro eu tinha menos firmeza, como se o chão estivesse se desfazendo aos meus pés. Eu lutava, sentindo minha respiração ficar pesada, o suor escorria pelo meu rosto e a música pesava sobre os meus ombros como se me culpasse por não conseguir acompanhá-la. Eu corria e corria e o meu esforço nunca era o suficiente. Os saltos não eram rápidos nem altos e cada músculo ardia no seu limite até que me desiquilibrei e fui ao chão.
A plateia estava lotada e todas as luzes estavam sob mim. Eu dançava com os olhos fechados, consciente dos meus movimentos, brincando com o ritmo da canção. De repente a música ficava mais intensa e eu precisava acelerar os passos para acompanhá-la. Eu me esforçava para fazer os movimentos com precisão e, mesmo assim, sentia que não estava conseguindo dar o melhor de mim. Faltava algo. Em uma sequência de piruetas, senti meu corpo alcançando o seu máximo. A cada novo giro eu tinha menos firmeza, como se o chão estivesse se desfazendo aos meus pés. Eu lutava, sentindo minha respiração ficar pesada, o suor escorria pelo meu rosto e a música pesava sobre os meus ombros como se me culpasse por não conseguir acompanhá-la. Eu corria e corria e o meu esforço nunca era o suficiente. Os saltos não eram rápidos nem altos e cada músculo ardia no seu limite até que me desiquilibrei e fui ao chão.
A música parou e ouvi o
silêncio congelante, como se o mundo tivesse parado e cravado os olhos em mim.
A voz da minha mãe repetindo “levanta e tenta de novo” me veio à mente e, mesmo
sentindo muita dor, apoiei as mãos no chão para tentar me erguer e continuar a
apresentação.
Mas havia algo errado. Vi
rachaduras que começavam na ponta dos meus dedos e subiam até os ombros.
Desesperada, me esforcei para me esticar para o lado. Por todo meu corpo, rachaduras
iam se espalhando como uma superfície de gelo quebrada. Sem saber o que fazer,
segurei uma das pernas com força na tentativa de impedir que ela se desfizesse.
Porém, o esforço fez com os meus braços se rompessem e caíssem ao meu lado,
como cascas ocas de uma árvore. Pouco a pouco o mesmo foi acontecendo com todo
o meu corpo. Vi cada pedaço de mim indo ao chão e, inexplicavelmente, eu não
sentia mais dor. Uma sensação de paz me dominou e com o coração tranquilo tomei
coragem para olhar para frente.
Todo o público me encarava,
atônito. Uma a uma, cada pessoa ficou de pé e começou a me aplaudir. Em poucos
minutos eles estavam me ovacionando, gritando “bravo,bravo” como se tivessem
acabado de assistir o melhor espetáculo de suas vidas.
Lentamente, fiquei em pé e
curvei o corpo para agradecer. Foi então que percebi. No lugar das rachaduras,
existiam pequenas veias que brilhavam, espalhando luz ao meu redor. Me
perguntei se eles conseguiam enxergar, mas cheguei a conclusão que talvez
fossem apenas capazes de sentir, mas que só isso já era o suficiente.
Com um sorriso no rosto,
deixei o palco. E mesmo que ninguém tivesse me dito nada, eu sabia que estava
livre. A bonequinha que por tanto tempo teve medo de se machucar finalmente
tinha se quebrado. E essa foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida.
Abri
os olhos assustada. Olhei ao redor e a primeira coisa que constatei é que não
estava na minha casa. Flashes da noite passada voltaram a minha mente: o Léo
com a Vanessa chegando à festa, o beijo no Gustavo, a discussão com a Mari e
tudo ficando escuro no banheiro.
Com
o corpo dolorido como se alguém tivesse me dado uma surra, me sentei na cama.
Minha cabeça doía e meu estômago revirava dentro de mim como se estivesse
navegando em um barco. Se era aquilo que todo mundo chamava de ressaca, agora
eu conseguia entender porque ninguém gostava dela... Ouvi barulho de uma chuva
fina caindo no telhado e percebi que não estava mais tão quente quanto me
lembrava. Tudo indicava que o tempo tinha fechado e o dia estava cinza, assim
como meu humor.
Aos
poucos minha vista foi voltando ao normal e as coisas entrando em foco. A
primeira em que reparei foi na Laís dormindo toda encolhida em uma poltrona.
Sentado no chão e com a cabeça encostada na perna da moça estava o Alê, a
postura indicando que o sono venceu e ele acabou ficando por ali mesmo. Uma das
mãos da minha companheira de Retiro estava delicadamente pousada sobre a cabeça
do meu amigo, os dedos estendidos entre os fios bagunçados, deixando nas
entrelinhas que algo havia acontecido. A cena também não deixava dúvidas: eu
estava na casa do skatista. Eu só não tinha ideia de como tinha chegado ali.
Acabei
ignorando completamente esse fato e passei a encarar os dois na minha frente.
Me peguei sorrindo ao imaginar o casal estranho que formariam. E me surpreendi
mais ainda ao pensar que, se eu não tivesse passado por todo aquele rolo, talvez
eles nunca tivessem se conhecido.
-
Bem que dizem que há males que vem para o bem... – resmunguei para mim mesma
enquanto me esforçava para sair da cama, torcendo para que aquela ressaca também
terminasse com um final feliz. Entretanto, levando em consideração que eu mal
conseguia andar e que estava vestida apenas com uma camiseta velha do Alê e a
minha calcinha, era meio difícil acreditar que conseguiria ter a mesma sorte.
Com
um tremendo esforço para me manter de pé e não fazer barulho, fui caminhando
até o corredor. Eu precisava de algo para tirar o gosto amargo e rançoso que
estava na minha boca.
Depois
do que pareceu uma eternidade, consegui chegar ao banheiro. Lavei o rosto e fiz
um bochecho com um Listerine que estava por ali. Parecia que minha cabeça ia se
desfazer em mil pedaços. Isso, é claro, se eu não colocasse até a minha alma
pra fora antes... Os enjoos que estava sentindo me faziam acreditar que todos
os mal-estares que tive antes não passaram de brincadeira de criança.
-
Nossa, alguém acordou com uma ressaca tremenda, hein? – ouvi alguém comentar.
Demorou alguns momentos para perceber que dona Melissa estava parada na porta.
Apenas
balancei a cabeça, só então me dando conta que estava encostada em uma das
paredes com os olhos semicerrados.
-
Vem, querida! Vou preparar um chá para você... – ela me pegou pela mão e me
guiou até a cozinha. Em silêncio, fiquei observando enquanto a mãe do Alê
colocava água na chaleira, separava duas canecas com desenhos felizes e
preparava uma mistura de ervas com aromas fortes.
-
Vão fazer o enjoo passar – explicou, provavelmente adivinhando a minha
curiosidade – Costuma ser tiro e queda.
Só espero que funcione para curar bebedeiras também – riu de forma descontraída,
o que me deixou mais aliviada. Sinal que não estava brava ou decepcionada
comigo. De repente me dei conta que a opinião da dona Melissa era muito
importante para mim.
-
Já avisei sua mãe que você está aqui. Como sei que a Beatriz é bem brava, não
contei tudo em detalhes. Na verdade, dei uma desculpa qualquer que ela pareceu
não acreditar muito, mas também não questionou – a mãe do Alê começou a me
contar remexendo nas louças que estavam na pia sem muita coragem de olhar para
mim – Mas com o seu pai eu precisei ser sincera. Até porque ele me pediu para
ficar de olho em você, então... – ela parecia muito sem graça por ter me
“dedurado” para os meus pais.
-
Tudo bem, dona Melissa. Sei que passei da conta ontem... – confessei, a
consciência mais pesada do que nunca.
-
É, mocinha... Você chegou aqui em um estado bem crítico – me lançou um olhar
sério enquanto servia os nossos chás – Mas tudo bem. Já foi. Todo mundo erra,
inclusive você. O que importa é que o Alexandre e a sua amiga te acharam e que
você está bem – abriu um sorriso apaziguador como se não quisesse ser mais dura
que o necessário - Mas fiquei muito preocupada. E seu pai também. Sabemos que
passou por um trauma complicado na escola recentemente, mas as coisas pareciam
estar caminhando bem. Aquele dia que o Edu almoçou aqui você pareceu lidar
muito bem com a situação. Ficamos sem entender nada, Gabi... Aconteceu alguma
coisa? Você e o Eduardo se desentenderam de novo? – questionou, segurando a
caneca entre as mãos e soprando para que chá esfriasse.
Desviei
os olhos por um instante, querendo evitar o confronto com a verdade. Porém, se
eu havia aprendido algo nos últimos tempos, é que não adiantava fugir da
realidade.
- Acho
que perdi minha boia de salvação... – falei com a voz cansada.
Dona
Melissa arqueou uma sobrancelha, uma ruga de preocupação surgindo na sua testa.
- É que
quando aconteceu todo aquele rolo com o Edu, fiquei sem saber para onde ir. Aí
acabei me apegando àquilo que apareceu. Ou seja, o Léo – expliquei.
- Léo? –
ela repetiu. O tom de voz de quem imagina “mas a fila já andou?”
Respirei
fundo e contei toda a história do Cabeludinho, sem esconder nenhum detalhe.
Percebi que ela ficou um pouco impressionada com a parte do contrato, mas não
comentou nada.
- Sabe
Gabi... Tudo isso me lembra muito a minha história – abriu um meio sorriso como
se a lembrança fosse algo bom.
- Sério?
– eu não conseguia imaginar dona Melissa chorando sozinha em um banheiro de
festa, ou forçando vômito por ter comido demais e muito menos se metendo nas
encrencas que me envolvi nos últimos tempos. Ela era uma mulher tão calma e
zen, mas ao mesmo tempo firme e decidida nas suas decisões. Era quase
impossível pensar nela como uma garota assustada e medrosa.
- Quando
eu tinha a sua idade, meu maior sonho era encontrar alguém, casar e ter filhos.
Além disso, queria muito ser uma mulher bem sucedida, com uma carreira de
sucesso e um nome importante no mercado. Passei uns sete anos correndo atrás
dessas metas até que consegui: tinha um marido e um cargo importante.
Engravidei, compramos uma mansão em um bairro de renome com todos os luxos que
eu poderia ter. Muita gente olhava e pensava “nossa, que mulher de sorte!”.
Minha vida era perfeita, exatamente do jeito que sonhei – fez uma pausa, dando
um longo gole na sua bebida.
- Mas
faltava alguma coisa, né? – perguntei, como se estivesse adivinhando o final da
história.
- Sim,
mas eu não sabia o que era. Foi aí que o Universo, ou Deus, ou como você queria
chamar, resolveu mostrar para mim – abriu novamente aquele sorriso, como se
estivesse lembrando de alguma travessura.
- Deixa
eu adivinhar! Foi aí que tudo deu errado? – chutei.
-
Exatamente! – riu de modo irônico - Meu trabalho começou a exigir cada vez mais
de mim. Viagens, cursos, pós-graduação, horas extras, responsabilidades,
cobranças... Eu tinha hora para entrar, mas não tinha hora para sair do
escritório. Consequentemente, minha vida particular começou a desandar. Eu não
tinha tempo para ficar com meu filho pequeno, falava com meu marido cada vez
menos e não sabia mais o que era ter amigos. Sabe qual foi o resultado disso?
- Me
parece que não deu muito certo... – ponderei. Imaginei que tudo isso tinha
acontecido antes deles se mudarem para o condomínio, já que eu não me lembrava
de ver a dona Melissa vestida como uma executiva e muito menos casada.
- Pois
é... eu descobri que meu marido estava me traindo. A gente tentou se acertar,
mas não deu certo e acabamos nos separando. Claro que fiquei acabada com o fim
do meu relacionamento. E aí, assim como você, usei uma boia de salvação. Só que
no meu caso foi o trabalho. Passei a me dedicar ainda mais ao escritório, fazia
tanta hora extra que mal tinha tempo para dormir. Cheguei realmente a acreditar
que tudo ficaria bem...
- Mas pelo
jeito não ficou... – pela cara de decepção que vi, não era difícil imaginar o
rumo da história.
Ela mexeu
a cabeça, negando – Se apegar a algo para esquecer o que não deu certo nunca
funciona. É quase como cavar o seu próprio buraco: uma hora você cai dentro
dele – mexeu as mãos, querendo enfatizar algo inevitável – O meu buraco foi ser
demitida.
-
Demitida? Como assim? – quase engasguei com o chá, tamanha foi a minha
surpresa.
Dona
Melissa deu de ombros – A empresa estava fazendo cortes e acharam que não
precisavam mais de mim.
Fiquei
olhando para ela, os olhos arregalados e a boca aberta, tentando entender como
era possível que uma coisa daquelas acontecesse.
- Esse é
o problema de usarmos boias, Gabi. Uma hora podemos ficar sem elas – disse, com
ar sério.
Balancei
a cabeça, entendendo a mensagem que ela queria me passar.
- E aí? O
que aconteceu depois? – quis saber.
- Eu
recebi uma proposta para trabalhar em uma outra empresa – respondeu, de pronto.
- Ah, então
não foi tão ruim... Logo as coisas se resolveram – comentei, aliviada.
- Na
verdade, não... – ela deu um sorrisinho de lado – Eu não aceitei a proposta.
- Como
não? Por quê? – quase engasguei com o chá novamente.
- Porque
percebi que um novo emprego seria o equivalente a uma nova boia, entende? Seria
apenas mais uma forma de fugir do que eu precisava encarar...
- E fugir
nunca resolve nada – repeti a frase que não parava de escutar nos últimos
tempos.
-
Exatamente. Quando fui demitida, percebi que estava entrando em um ciclo sem
fim. Era algo dar errado para eu correr e colocar outra no lugar. Mas até
quando eu continuaria daquele jeito? Então a solução foi parar e olhar para
onde eu tinha mais medo: para dentro de mim mesma. A gente sempre espera que as
soluções apareçam milagrosamente na nossa frente, sem fazer nenhum esforço. Mas
a verdade, Gabs, é que ela precisa partir de nós. Nada muda se a gente não
mudar – ela falava com a voz calma e serena, o que me fez refletir quantas
vezes minha mãe tinha falado daquele jeito comigo. Talvez nossa relação seria
muito mais fácil se pudéssemos sentar para tomar um chá e ela falasse para mim
tudo o que aconteceu na vida dela, sem mágoas ou traumas.
- E a
qual conclusão você chegou? – perguntei, bastante interessada.
- Que
tudo o que eu planejei a vida inteira foi baseado no desejo de outras pessoas.
Eu me formei porque queria agradar meus pais, me casei porque todo mundo sempre
dizia que esse era o caminho certo a seguir. Quando tudo deu errado, eu teimei
nesse objetivo porque não me dei conta que era uma missão já fracassada. Era
como se eu estivesse vivendo no piloto automático, entende? – ela me encarou.
Por um momento, vi a minha própria história refletida nos seus olhos. Claro, eu
não tinha casado ou tinha filhos, mas muita coisa se encaixava: eu fazia balé
por causa da minha mãe, era amiga da Mari e da Carol por pura falta de coragem
de sair e conhecer pessoas novas, fazia os cursos que dona Beatriz achava certo
e estava prestes a definir todo o meu futuro de acordo com o que ela acreditava
ser o melhor para mim. Eu vivi no piloto automático todo aquele tempo sem me
dar conta. E, agora que tinha assumido um controle parcial do meu plano de voo,
simplesmente não sabia para onde ir.
- E foi
aí que você parou e se perguntou “o que eu quero de verdade”? – adiantei a
próxima parte da história, recordando a conversa que tive com o meu pai.
- Isso
mesmo, garota esperta – piscou para mim – E adivinha só! Eu não tinha a menor
ideia! Eu me vestia com as peças que eram aceitas no meu trabalho, eu comia o
que a empregada fazia, eu ouvia as músicas que tocavam na rádio, eu frequentava
os lugares que me ex-marido achava interessante...
- E como
foi que você descobriu o que queria? – fiz a pergunta de um milhão de dólares.
Seria capaz de fazer qualquer coisa para conseguir aquela resposta.
- Fácil!
Comecei pelo o que eu não queria – enfatizou bem a palavra não - Foi por isso
que não aceitei a proposta da outra empresa. Aproveitei o dinheiro que recebi
quando fui demitida e resolvi passar um tempo em casa, tomando conta das minhas
coisas e, principalmente, do meu filho. Naquela época, o Alê ainda era pequeno
e precisava muito de mim. E, ao invés de ficar ao lado dele, estava abrindo mão
do meu papel de mãe para assumir o papel que os outros esperavam de mim. Esse
foi o primeiro passo e, a partir daí, vieram todos os outros – deu o último
gole na bebida que, eu ao julgar pela minha, já estava fria.
- Como
assim?
- Eu
recebi uma boa grana de indenização da empresa que trabalhava. Porém, para
fazer que a bolada durasse mais, precisei mudar completamente o meu estilo de
vida. Nada de últimos lançamentos da moda, de almoços em restaurantes, de
vinhos caros, de compras em lojas de marca, de cozinheira e empregada em
casa... Resumindo, nada de luxo – mexeu as mãos como se quisesse destacar a
última frase – Na época, fui viver em uma casinha no centro da cidade. Só tinha
sala, quarto e cozinha. Vendi quase todas minhas roupas, sapatos e móveis.
Fiquei apenas com o necessário. E, nessas negociações, conheci muitas mulheres
que estavam passando pelo mesmo problema que eu. Comecei a aconselhá-las, elas
começaram a comentar de mim com as amigas e, em pouco tempo, tinha gente
querendo me pagar para ter a minha ajuda, acredita? – ela riu, como se até hoje
não acreditasse na própria sorte – Foi assim que resolvi ser coach e me
especializei no atendimento de mulheres que queriam dar a volta por cima. Com o
tempo, de tanto ouvi-las reclamar dos problemas que enfrentavam com os filhos
adolescentes, vi uma oportunidade de negócio: poderia ganhar dinheiro e
ajudá-las ainda mais. E assim o próximo passo foi dado.
- Como
meu pai diz, não nade contra a maré e, se possível, surfe com a onda – repeti a
frase do Mário Sérgio, a nossa conversa fazendo cada vez mais sentido para mim.
- Não
estou dizendo que vai ser fácil. Demorou anos para chegar onde estou agora, mas
é extremamente gratificante. A partir do momento que você toma consciência das
suas decisões, não tem como o plano dar errado. Cada passo, cada queda, cada
aprendizado... tudo faz parte do que você quer. Se hoje eu e meu filho nos
damos bem é porque fiz uma escolha lá no passado. Tive que aprender a me virar
sem babá, passar noites em claro cuidando dele sozinha, mas valeu a pena – o
brilho nos olhos dela não deixava dúvida. O jeito como ela e o Alê se tratavam
era tão bacana. Dava vontade de ser filha da dona Melissa só para experimentar
a cumplicidade que rolava entre eles.
- Mas eu
não sei bem o que quero... Só sei que não quero mais ser uma bonequinha de
porcelana – desabafei.
- Esse já
é o começo. Agora você só precisa pensar qual é o primeiro passo para chegar
aonde você quer - disse, tentando me encorajar.
De
repente, o sonho que tive antes de acordar veio à minha cabeça. Eu me
esborrachando no chão, cada pedaço de mim rachado, a luz que vinha do meu
interior e o público me aplaudindo, apesar do meu erro gravíssimo na
coreografia. Lembrei da sensação de contentamento ao perceber que me quebrar
fora a melhor coisa que me acontecera. E então, a última peça finalmente se
encaixou: aquele sonho poderia se tornar realidade. Eu só precisava dizer sim e
deixar o pessoal gravar o clipe da “trilha sonora” da minha vida.
- Acho
que já tenho um bom caminho por onde começar – abri um sorriso presunçoso.
- Ihh...
essa cara é de alguém está aprontando algo – dona Melissa brincou.
- Na
verdade, não sou eu. Quem teve a ideia foi um garoto lá da escola, o Fernando,
que está no meu grupo da aula de Artes junto com o Alê e a Rebeca.
- Opa!
Escutei meu nome! – o skatista apareceu na cozinha, com o cabelo todo bagunçado
e jeito de quem tinha acabado de acordar – Bom dia, Gabs! Bom dia, mãe. Ou boa
tarde, sei lá... – ele se jogou em um banco perto de mim e estendeu a mão para
pegar uma maçã que estava sobre o balcão.
- Estava
contando para a sua mãe sobre a ideia do clipe – atualizei meu amigo.
- Ahh,
vai ser massa... – disse antes de dar uma mordida na fruta.
- Alguém,
pelo amor de Deus, me explica do que estão falando... – dona Melissa pediu
antes de dar um tapa na mão do filho e repreendê-lo por comer a maçã sem
lavá-la.
Enquanto
resumia o plano para ela, seu rosto se iluminou de entusiasmo. Sem dúvidas, ela
tinha amado a proposta.
- Agora
só falta a Gabi parar de doce e aceitar logo a proposta – meu amigo me lançou
um olhar sarcástico para me provocar.
- Pois eu
sou capaz de apostar que ela vai dizer sim – a mãe dele afirmou com jeito de
quem tem “uma carta na manga”.
Pisquei
para o skatista, concordando com a cabeça.
- Desencantou?
Não acredito! Já vou avisar o pessoal antes que você desista da ideia – ele
levantou e disparou na direção do quarto, provavelmente para pegar o celular.
- Boa!
Acho que vou pedir para o Miguel me ajudar a criar uma coreografia – me
surpreendi ao perceber a minha animação. Dei um pulo do banco e já ia seguindo
na direção do quarto quando dona Melissa me interrompeu.
- Hããã...
Se isso envolve usar o seu celular, sinto dizer que ele está confiscado – ela
comunicou com a voz firme, porém sua expressão entregava que não estava nem um
pouco à vontade em me dar aquela notícia.
- Oi?
Como assim? – meu mundo parou por um momento.
- É um
pedido do seu pai. Uma forma de punição por você ter bebido demais na festa. A
gente está aqui para te ajudar, Gabi. Mas não podemos simplesmente aceitar tudo
o que você faz. Uma semana cabulando aula já foi uma falta bem grave que
perdoamos. Não podemos deixar mais essa passar... – seu tom dizia que não teria
chance para negociação. E, no fundo, eu sabia que eles estavam certos.
- Quanto
tempo? – perguntei com a voz vencida.
- Duas
semanas. E o notebook entra nessa também – ela deu o golpe fatal – Vou pedir
para o Alê passar na sua casa depois para pegar. Mas o celular você já pode me
entregar agora.
Senti
dificuldade em respirar. Isso significava abstinência total de internet. Nada
de séries, redes sociais, música... nada de nada! Ok, dessa vez eles tinham
pegado pesado. Toda felicidade que sentira há pouco tempo já tinha ido embora.
A vida andava empenhada em me “trollar” já fazia um tempo. Eu já deveria estar
acostumada...
- Ok, te
entrego já, já. Pode ser? – fiz cara de pidona.
Ela
consentiu o meu “alvará” e voltei para o quarto ainda abalada com a notícia.
Como eu viveria duas semanas isolada do mundo?
- Já quero
ser a maquiadora oficial desse clipe – Laís gritou assim que me viu.
-
Caramba! A notícia se espalhou rápido, né? – fiquei impressionada.
- A gente
não brinca em serviço, Gabs – Alê se gabou - Todo mundo do grupo já está
sabendo. Começamos a gravar amanhã.
- Amanhã?
Miga, sua louca, vou precisar muito de você! Alguém vai ter que dar um jeito
nessa minha cara de morta. Além disso, você tem que me ajudar no figurino
também, porque você arrasa, né? – apontei para ela, a animação voltando a dar
as caras.
Ela
sorriu, bastante empolgada – E aí, gatinha? Está melhor?
- Agora
estou... – fiquei um pouco sem graça ao me lembrar do meu porre – Aliás,
falando nisso, como foi que eu cheguei aqui?
- Nós te
resgatamos, Monster High. Em uma cena digna de filme, inclusive – o skatista
disse.
- Ai meu
Deus, como foi isso? – sentei na cadeira da escrivaninha, de frente para os
dois que estavam na cama, bem perto um do outro, por sinal.
- Depois
que pegou o gato do Gú e sambou na cara de todo o recalque no meio da pista – a
morena olhou pra mim com cara de “arrasou, amiga” – você simplesmente sumiu da
festa. Procuramos por toda parte e nada. Foi nessa hora que tivemos a brilhante
ideia de olhar no banheiro e, bingo! Tinha uma fila gigante, a porta estava
trancada e ninguém respondia. Olhei para cara do Alê e falei: só pode ser ela!
- Aí eu
deixei a Laís de guarda na porta tentando falar com você e sai correndo atrás
do Caio. Por sorte ele tinha uma chave reserva. Espantamos todo mundo da fila,
abrimos a porta e te encontramos deitada no chão. Fiquei desesperado porque não
sabia se você estava só dormindo ou desmaiada – a voz do skatista ficou tensa.
- Foi o
Caio que salvou a pátria. Ele teve a ideia de juntar todo mundo para cantar o
parabéns. Enquanto isso, passamos despercebidos pelo pessoal e entramos no
carro. Quando chegamos em casa te demos um banho super, hiper gelado, te
colocamos para dormir e ficamos vigiando para ver se não ia morrer – ela
concluiu.
- Poxa,
muito obrigada! – foi tudo o que consegui falar. Dizer que eu tinha os melhores
amigos do mundo seria pouco. Com o Alê eu já sabia que podia contar. Mas com a
Laís e o Caio eu nem poderia imaginar. Eu não tinha dúvidas que a Mari ou a
Carol jamais fariam isso por mim. Ou, se fizessem, ficariam me julgando pelo
resto da vida. Talvez aquele fosse mais um ponto positivo da “maré de zica” que
a vida vinha me proporcionando...
- Muito
obrigada nada, bonequinha! Quando eu estiver de porre, pode tratar de me
colocar no carro, me trazer para casa e me dar banho – o Alê brincou.
- A parte
do dar banho eu acho que posso deixar para a Laís, né? – arqueei a sobrancelha
– Falando nisso, qual é o lance? – apontei para os dois na maior cara de pau.
O Alê
mexeu no boné, sem graça, mas a Laís manteve sua postura de mulher decidida e
assumiu a situação – Ele me contou da mancada que a tal Carol deu com ele. Dei
a ideia de seguir o seu exemplo: fazer ciúme para ela. Por isso ficamos juntos
na festa, fingindo que estava rolando algo.
- E estão
fingindo até agora, né? – disse em tom sarcástico.
Os dois deram
de ombros e desviaram o olhar. Entendi que aquilo era o máximo que conseguiria
arrancar deles no momento.
- Mas já
que estamos colocando as cartas na mesa, o que rola entre você e o Léo? – a
Laís aproveitou para virar o jogo – E nem venha me dizer que não é nada, porque
eu sei que tem. Conheço o Leonardo o suficiente para perceber quando ele está
incomodado com algo. E ele estava mui-to incomodado com a sua pegação com o Gú.
Tanto que veio comentar comigo e, acredite, o Léo é desencanado demais para se
dar o trabalho de falar sobre qualquer coisa que não seja do interesse dele.
Mexi no
cabelo para tentar ganhar tempo. Não queria falar do contrato com eles, mas
sabia que teria que inventar uma história muito boa para convencê-los de que
não tinha nada com o Léo. Respirei fundo e fixei meu olhar nos dois, que me
encaravam na expectativa. Acabei concluindo que eles mereciam ouvir a verdade
depois de todo o trabalho que dei na noite anterior.
- Estão
preparados? – perguntei com um sorrisinho amarelo, tentando descontrair o
ambiente.
- Sempre!
– o Alê respondeu – Desembucha logo, mulher!
Tomei
fôlego e contei toda a história. Claro que os dois fizeram várias interrupções
e perguntaram cada mínimo detalhe. Quando terminei, o Alê soltou um assovio.
-
Gabriela, quando eu disse que era para você continuar como a Natasha da música
do Capital, não precisava levar o meu conselho tão a sério. Olha, preciso
confessar: estou realmente impressionado com a quantidade de problemas que você
consegue se meter em tão pouco tempo – o skatista balançou a cabeça fazendo
cara de “você é boa mesmo nisso”.
- Mas
veja o lado bom: a situação aproximou ainda mais a sua mãe do meu pai – eu estava
ficando especialista em encontrar o aspecto positivo das coisas.
- Isso
é... eles passaram horas no telefone quando você chegou – ele ponderou.
Lancei um
olhar para ele de quem diz “eu não disse?”.
- Você
está impressionado com isso? Estou passada mesmo é com a capacidade da Gabi de
fazer o Léo se rebelar – a Laís entrou no assunto, os olhos arregalados confirmando
que ela estava mesmo surpresa – Faz muito tempo que o Cabeludinho reclama da
Vanessa, mas nunca teve coragem de terminar com ela. Lembra no Retiro quando
dei em cima dele? Era uma aposta que fiz com o Gú e o Caio. Dei muito mole para
o Léo, vocês nem imaginam... Mesmo assim, ele nunca deixou a entender que seria
capaz de trair a Vanessa. Aí vem a Gabi, e BANG! Faz o menino sair da casinha!
Arrasou, garota!
- É, mas
pelo que vi na festa, o período fora da casinha já acabou, né? – Alê olhou sério
para nós duas, como se quisesse nos trazer de volta à realidade.
- Isso é
verdade... – a morena balançou a cabeça, refletindo – Na boa, Gabi... Não acho
que exista nenhuma chance do Léo terminar com a Vanessa. Eles vivem brigando,
ele adora reclamar dela, mas nunca se separam de verdade – ela me olhava com
uma expressão triste, como se soubesse o quanto aquelas palavras machucavam –
Para ele, é mais fácil viver reclamando do que terminar e encarar a vida
sozinho, sabe? Os dois estão juntos há muito tempo, o Léo já acostumou ter a
Vanessa sempre ali, disponível.
Tentei
fingir que não me importava, mas cada frase que a Laís dizia parecia um faca
entrando cada vez mais fundo no meu coração. Mas, dessa vez, era uma dor
diferente. Na época do Edu, por exemplo, o sentimento era que eu tinha feito
algo errado, que a situação tinha me escapado entre os dedos. Era mais a culpa,
o ressentimento e a vergonha de ter vacilado e deixado que outras pessoas assumissem
as rédeas da situação.
Agora a
dor era mais profunda... genuína. Parecia que a minha temperatura tinha caído
vários graus. Meu coração estava frio. Cada parte do meu corpo doía, minha
respiração parecia mais densa e minha boca mais seca. Era como se uma peça
importante tivesse se soltado e eu precisasse encontrar uma maneira de manter
tudo rodando mesmo sem ela.
Um
silêncio constrangedor tomou conta do quarto. Engoli em seco e, não sei de
onde, tirei forças para continuar a conversa.
- Vamos
mesmo começar a gravar o clipe amanhã? – mudei de assunto, minha voz um tom
abaixo do normal.
- Sim. E
a propósito, queremos começar a gravar na escola de dança da sua mãe. Você
ainda tem a chave, né? – o Alê percebeu a deixa para mudar de assunto.
- Oi?
Como que é?
Os dois
me explicaram a ideia inicial, empolgados. Acabamos passando o resto do dia
acertando os detalhes, Fernando e Rebeca participando da discussão por
WhattsApp.
Aquele
trabalho me ajudou a deixar o lance com o Léo um pouco de lado. Por mais que
uma dorzinha chata insistisse em me incomodar, era muito bom estar envolvida em
algo que eu realmente queria fazer parte. Era como dizia a letra da música: eu
continuaria em frente. Afinal, não poderia parar, e nem pararia de me mexer.
Já eram
quase oito da noite quando terminamos de esquematizar tudo. Toda turma se
reuniria no dia seguinte na casa do Alê, onde almoçaríamos e passaríamos o
resto da tarde trabalhando.
Aproveitei
os últimos minutos que me restavam com o meu celular para chamar o Miguel para
me ajudar. Claro que ele brigou comigo por eu ter me afastado, mas topou
participar do clipe de pronto. Depois disso, entreguei meu aparelho para dona
Melissa, que o guardou no seu escritório prometendo cuidar bem dele.
No fim do
dia, acabei agradecendo pela resseca. O mal-estar ainda era tanto que, na
certa, cairia na cama e dormiria imediatamente. Sem tempo para pesadelos ou
ressentimentos por causa do Léo.
- Gabi,
vou levar a Laís em casa e, na volta, passo na sua casa para pegar o notebook,
beleza? Já vai se despedindo da vida online, bonequinha – meu amigo zuou com a
minha cara enquanto nos preparávamos para sair. Depois de passar o dia usando a
camiseta do Alê como vestido, achei que seria melhor não voltar para casa
daquele jeito. Não queria arrumar mais problemas, pelo menos não por enquanto,
então coloquei a roupa que usei na festa.
- Beleza!
Mas você vai ter que buzinar, porque não tenho mais celular para você ligar –
respondi, enquanto me afastava deles. Os dois caminhavam juntos em direção à
garagem e precisei virar o corpo para conseguir vê-los enquanto seguia na
direção oposta.
Estava
tão distraída que não percebi quando esbarrei em alguém. Quase fui ao chão, mas
um par de mãos ágeis me segurou, colocando-me de pé novamente.
- Parece
que estou sempre no seu caminho, hein Gabi? – uma voz conhecida comentou com o
seu inconfundível jeito irônico.
Virei meu
rosto e encarei os olhos de tempestade diante de mim. Não precisei de muito
tempo para entender que ele se referia ao dia que nos conhecemos, quando eu
também tropecei e quase cai em cima dele.
Minha
vontade era de me soltar, sair correndo e só parar quando estivesse bem longe
dele. Mas me obriguei a respirar fundo. Eu não era mais frágil e estava na hora
dele saber disso.
Fiz uma
pausa para arrumar o cabelo e, com o sorriso mais provocador que eu tinha,
respondi – Deve ser porque você não resiste ao meu charme natural. Aí quando
percebe, já está cruzando o meu caminho de novo - me soltei com calma e
continuei meu caminho, deixando o Laís e o Alê embasbacados e um carioca sem
resposta.
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Notas
finais: Só eu
que achei que a terceira fase já começou prometendo fortes emoções?
Vai ter clipe, vai ter show do Jorge e Mateus, tem
a volta do Edu, tem o Léo vacilando, tem LaLe e, principalmente, tem Gabi
querendo dar a volta por cima.
Genteeee do céu, socorro! Se a segunda fase foi
movimentada, imagina o que vem por aí!
Já estou morrendo de ansiedade para o próximo
capítulo. E vocês?
Beijo grande e a gente se vê no cap 31!
PS: Já ia esquecendo de falar! A história da Melissa
foi inspirada em uma coach e uma terapeuta que eu acompanho e AMO! O nome delas
é Flávia Melissa (não, o nome não é concidência! rs!) e Paula Abreu. Elas são
MARAS, gente. Recomendo muito para quem curte esse lance de desenvolvimento
pessoal.
E a “carreira” de vlogger do Alê também teve
inspiração. Conhecem o Cristian Figueiredo? Sim, foi nele mesmo que me baseei,
inclusive para escrever a parte do vídeo que fala sobre “como saber se o cara
está afim de você”.
É isso, só queria dar os devidos créditos. =)