segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Capítulo 30 – “Shake it off”

*** Início da terceira fase: Preparar para decolar ***
[“Tenho andado distraído
Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso
Só que agora é diferente
Estou tão tranquilo
E tão contente

Quantas chances
desperdicei
Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava
Provar nada pra ninguém

Me fiz em mil pedaços
Pra você juntar
E queria sempre achar
Explicação pro que eu sentia

Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo
É sempre a pior mentira” – Quase sem querer, Legião Urbana]

A plateia estava lotada e todas as luzes estavam sob mim. Eu dançava com os olhos fechados, consciente dos meus movimentos, brincando com o ritmo da canção. De repente a música ficava mais intensa e eu precisava acelerar os passos para acompanhá-la. Eu me esforçava para fazer os movimentos com precisão e, mesmo assim, sentia que não estava conseguindo dar o melhor de mim. Faltava algo. Em uma sequência de piruetas, senti meu corpo alcançando o seu máximo. A cada novo giro eu tinha menos firmeza, como se o chão estivesse se desfazendo aos meus pés. Eu lutava, sentindo minha respiração ficar pesada, o suor escorria pelo meu rosto e a música pesava sobre os meus ombros como se me culpasse por não conseguir acompanhá-la. Eu corria e corria e o meu esforço nunca era o suficiente. Os saltos não eram rápidos nem altos e cada músculo ardia no seu limite até que me desiquilibrei e fui ao chão.

A música parou e ouvi o silêncio congelante, como se o mundo tivesse parado e cravado os olhos em mim. A voz da minha mãe repetindo “levanta e tenta de novo” me veio à mente e, mesmo sentindo muita dor, apoiei as mãos no chão para tentar me erguer e continuar a apresentação.

Mas havia algo errado. Vi rachaduras que começavam na ponta dos meus dedos e subiam até os ombros. Desesperada, me esforcei para me esticar para o lado. Por todo meu corpo, rachaduras iam se espalhando como uma superfície de gelo quebrada. Sem saber o que fazer, segurei uma das pernas com força na tentativa de impedir que ela se desfizesse. Porém, o esforço fez com os meus braços se rompessem e caíssem ao meu lado, como cascas ocas de uma árvore. Pouco a pouco o mesmo foi acontecendo com todo o meu corpo. Vi cada pedaço de mim indo ao chão e, inexplicavelmente, eu não sentia mais dor. Uma sensação de paz me dominou e com o coração tranquilo tomei coragem para olhar para frente.

Todo o público me encarava, atônito. Uma a uma, cada pessoa ficou de pé e começou a me aplaudir. Em poucos minutos eles estavam me ovacionando, gritando “bravo,bravo” como se tivessem acabado de assistir o melhor espetáculo de suas vidas.

Lentamente, fiquei em pé e curvei o corpo para agradecer. Foi então que percebi. No lugar das rachaduras, existiam pequenas veias que brilhavam, espalhando luz ao meu redor. Me perguntei se eles conseguiam enxergar, mas cheguei a conclusão que talvez fossem apenas capazes de sentir, mas que só isso já era o suficiente.

Com um sorriso no rosto, deixei o palco. E mesmo que ninguém tivesse me dito nada, eu sabia que estava livre. A bonequinha que por tanto tempo teve medo de se machucar finalmente tinha se quebrado. E essa foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida.

Abri os olhos assustada. Olhei ao redor e a primeira coisa que constatei é que não estava na minha casa. Flashes da noite passada voltaram a minha mente: o Léo com a Vanessa chegando à festa, o beijo no Gustavo, a discussão com a Mari e tudo ficando escuro no banheiro.

Com o corpo dolorido como se alguém tivesse me dado uma surra, me sentei na cama. Minha cabeça doía e meu estômago revirava dentro de mim como se estivesse navegando em um barco. Se era aquilo que todo mundo chamava de ressaca, agora eu conseguia entender porque ninguém gostava dela... Ouvi barulho de uma chuva fina caindo no telhado e percebi que não estava mais tão quente quanto me lembrava. Tudo indicava que o tempo tinha fechado e o dia estava cinza, assim como meu humor.

Aos poucos minha vista foi voltando ao normal e as coisas entrando em foco. A primeira em que reparei foi na Laís dormindo toda encolhida em uma poltrona. Sentado no chão e com a cabeça encostada na perna da moça estava o Alê, a postura indicando que o sono venceu e ele acabou ficando por ali mesmo. Uma das mãos da minha companheira de Retiro estava delicadamente pousada sobre a cabeça do meu amigo, os dedos estendidos entre os fios bagunçados, deixando nas entrelinhas que algo havia acontecido. A cena também não deixava dúvidas: eu estava na casa do skatista. Eu só não tinha ideia de como tinha chegado ali.

Acabei ignorando completamente esse fato e passei a encarar os dois na minha frente. Me peguei sorrindo ao imaginar o casal estranho que formariam. E me surpreendi mais ainda ao pensar que, se eu não tivesse passado por todo aquele rolo, talvez eles nunca tivessem se conhecido.

- Bem que dizem que há males que vem para o bem... – resmunguei para mim mesma enquanto me esforçava para sair da cama, torcendo para que aquela ressaca também terminasse com um final feliz. Entretanto, levando em consideração que eu mal conseguia andar e que estava vestida apenas com uma camiseta velha do Alê e a minha calcinha, era meio difícil acreditar que conseguiria ter a mesma sorte.

Com um tremendo esforço para me manter de pé e não fazer barulho, fui caminhando até o corredor. Eu precisava de algo para tirar o gosto amargo e rançoso que estava na minha boca.

Depois do que pareceu uma eternidade, consegui chegar ao banheiro. Lavei o rosto e fiz um bochecho com um Listerine que estava por ali. Parecia que minha cabeça ia se desfazer em mil pedaços. Isso, é claro, se eu não colocasse até a minha alma pra fora antes... Os enjoos que estava sentindo me faziam acreditar que todos os mal-estares que tive antes não passaram de brincadeira de criança.

- Nossa, alguém acordou com uma ressaca tremenda, hein? – ouvi alguém comentar. Demorou alguns momentos para perceber que dona Melissa estava parada na porta.

Apenas balancei a cabeça, só então me dando conta que estava encostada em uma das paredes com os olhos semicerrados.

- Vem, querida! Vou preparar um chá para você... – ela me pegou pela mão e me guiou até a cozinha. Em silêncio, fiquei observando enquanto a mãe do Alê colocava água na chaleira, separava duas canecas com desenhos felizes e preparava uma mistura de ervas com aromas fortes.

- Vão fazer o enjoo passar – explicou, provavelmente adivinhando a minha curiosidade  – Costuma ser tiro e queda. Só espero que funcione para curar bebedeiras também – riu de forma descontraída, o que me deixou mais aliviada. Sinal que não estava brava ou decepcionada comigo. De repente me dei conta que a opinião da dona Melissa era muito importante para mim.

- Já avisei sua mãe que você está aqui. Como sei que a Beatriz é bem brava, não contei tudo em detalhes. Na verdade, dei uma desculpa qualquer que ela pareceu não acreditar muito, mas também não questionou – a mãe do Alê começou a me contar remexendo nas louças que estavam na pia sem muita coragem de olhar para mim – Mas com o seu pai eu precisei ser sincera. Até porque ele me pediu para ficar de olho em você, então... – ela parecia muito sem graça por ter me “dedurado” para os meus pais.

- Tudo bem, dona Melissa. Sei que passei da conta ontem... – confessei, a consciência mais pesada do que nunca.

- É, mocinha... Você chegou aqui em um estado bem crítico – me lançou um olhar sério enquanto servia os nossos chás – Mas tudo bem. Já foi. Todo mundo erra, inclusive você. O que importa é que o Alexandre e a sua amiga te acharam e que você está bem – abriu um sorriso apaziguador como se não quisesse ser mais dura que o necessário - Mas fiquei muito preocupada. E seu pai também. Sabemos que passou por um trauma complicado na escola recentemente, mas as coisas pareciam estar caminhando bem. Aquele dia que o Edu almoçou aqui você pareceu lidar muito bem com a situação. Ficamos sem entender nada, Gabi... Aconteceu alguma coisa? Você e o Eduardo se desentenderam de novo? – questionou, segurando a caneca entre as mãos e soprando para que chá esfriasse.

Desviei os olhos por um instante, querendo evitar o confronto com a verdade. Porém, se eu havia aprendido algo nos últimos tempos, é que não adiantava fugir da realidade.

- Acho que perdi minha boia de salvação... – falei com a voz cansada.

Dona Melissa arqueou uma sobrancelha, uma ruga de preocupação surgindo na sua testa.

- É que quando aconteceu todo aquele rolo com o Edu, fiquei sem saber para onde ir. Aí acabei me apegando àquilo que apareceu. Ou seja, o Léo – expliquei.

- Léo? – ela repetiu. O tom de voz de quem imagina “mas a fila já andou?”

Respirei fundo e contei toda a história do Cabeludinho, sem esconder nenhum detalhe. Percebi que ela ficou um pouco impressionada com a parte do contrato, mas não comentou nada.

- Sabe Gabi... Tudo isso me lembra muito a minha história – abriu um meio sorriso como se a lembrança fosse algo bom.

- Sério? – eu não conseguia imaginar dona Melissa chorando sozinha em um banheiro de festa, ou forçando vômito por ter comido demais e muito menos se metendo nas encrencas que me envolvi nos últimos tempos. Ela era uma mulher tão calma e zen, mas ao mesmo tempo firme e decidida nas suas decisões. Era quase impossível pensar nela como uma garota assustada e medrosa.

- Quando eu tinha a sua idade, meu maior sonho era encontrar alguém, casar e ter filhos. Além disso, queria muito ser uma mulher bem sucedida, com uma carreira de sucesso e um nome importante no mercado. Passei uns sete anos correndo atrás dessas metas até que consegui: tinha um marido e um cargo importante. Engravidei, compramos uma mansão em um bairro de renome com todos os luxos que eu poderia ter. Muita gente olhava e pensava “nossa, que mulher de sorte!”. Minha vida era perfeita, exatamente do jeito que sonhei – fez uma pausa, dando um longo gole na sua bebida.

- Mas faltava alguma coisa, né? – perguntei, como se estivesse adivinhando o final da história.

- Sim, mas eu não sabia o que era. Foi aí que o Universo, ou Deus, ou como você queria chamar, resolveu mostrar para mim – abriu novamente aquele sorriso, como se estivesse lembrando de alguma travessura.

- Deixa eu adivinhar! Foi aí que tudo deu errado? – chutei.

- Exatamente! – riu de modo irônico - Meu trabalho começou a exigir cada vez mais de mim. Viagens, cursos, pós-graduação, horas extras, responsabilidades, cobranças... Eu tinha hora para entrar, mas não tinha hora para sair do escritório. Consequentemente, minha vida particular começou a desandar. Eu não tinha tempo para ficar com meu filho pequeno, falava com meu marido cada vez menos e não sabia mais o que era ter amigos. Sabe qual foi o resultado disso?

- Me parece que não deu muito certo... – ponderei. Imaginei que tudo isso tinha acontecido antes deles se mudarem para o condomínio, já que eu não me lembrava de ver a dona Melissa vestida como uma executiva e muito menos casada.

- Pois é... eu descobri que meu marido estava me traindo. A gente tentou se acertar, mas não deu certo e acabamos nos separando. Claro que fiquei acabada com o fim do meu relacionamento. E aí, assim como você, usei uma boia de salvação. Só que no meu caso foi o trabalho. Passei a me dedicar ainda mais ao escritório, fazia tanta hora extra que mal tinha tempo para dormir. Cheguei realmente a acreditar que tudo ficaria bem...

- Mas pelo jeito não ficou... – pela cara de decepção que vi, não era difícil imaginar o rumo da história.

Ela mexeu a cabeça, negando – Se apegar a algo para esquecer o que não deu certo nunca funciona. É quase como cavar o seu próprio buraco: uma hora você cai dentro dele – mexeu as mãos, querendo enfatizar algo inevitável – O meu buraco foi ser demitida.

- Demitida? Como assim? – quase engasguei com o chá, tamanha foi a minha surpresa.

Dona Melissa deu de ombros – A empresa estava fazendo cortes e acharam que não precisavam mais de mim.

Fiquei olhando para ela, os olhos arregalados e a boca aberta, tentando entender como era possível que uma coisa daquelas acontecesse.

- Esse é o problema de usarmos boias, Gabi. Uma hora podemos ficar sem elas – disse, com ar sério.

Balancei a cabeça, entendendo a mensagem que ela queria me passar.

- E aí? O que aconteceu depois? – quis saber.

- Eu recebi uma proposta para trabalhar em uma outra empresa – respondeu, de pronto.

- Ah, então não foi tão ruim... Logo as coisas se resolveram – comentei, aliviada.

- Na verdade, não... – ela deu um sorrisinho de lado – Eu não aceitei a proposta.

- Como não? Por quê? – quase engasguei com o chá novamente.

- Porque percebi que um novo emprego seria o equivalente a uma nova boia, entende? Seria apenas mais uma forma de fugir do que eu precisava encarar...

- E fugir nunca resolve nada – repeti a frase que não parava de escutar nos últimos tempos.

- Exatamente. Quando fui demitida, percebi que estava entrando em um ciclo sem fim. Era algo dar errado para eu correr e colocar outra no lugar. Mas até quando eu continuaria daquele jeito? Então a solução foi parar e olhar para onde eu tinha mais medo: para dentro de mim mesma. A gente sempre espera que as soluções apareçam milagrosamente na nossa frente, sem fazer nenhum esforço. Mas a verdade, Gabs, é que ela precisa partir de nós. Nada muda se a gente não mudar – ela falava com a voz calma e serena, o que me fez refletir quantas vezes minha mãe tinha falado daquele jeito comigo. Talvez nossa relação seria muito mais fácil se pudéssemos sentar para tomar um chá e ela falasse para mim tudo o que aconteceu na vida dela, sem mágoas ou traumas.

- E a qual conclusão você chegou? – perguntei, bastante interessada.

- Que tudo o que eu planejei a vida inteira foi baseado no desejo de outras pessoas. Eu me formei porque queria agradar meus pais, me casei porque todo mundo sempre dizia que esse era o caminho certo a seguir. Quando tudo deu errado, eu teimei nesse objetivo porque não me dei conta que era uma missão já fracassada. Era como se eu estivesse vivendo no piloto automático, entende? – ela me encarou. Por um momento, vi a minha própria história refletida nos seus olhos. Claro, eu não tinha casado ou tinha filhos, mas muita coisa se encaixava: eu fazia balé por causa da minha mãe, era amiga da Mari e da Carol por pura falta de coragem de sair e conhecer pessoas novas, fazia os cursos que dona Beatriz achava certo e estava prestes a definir todo o meu futuro de acordo com o que ela acreditava ser o melhor para mim. Eu vivi no piloto automático todo aquele tempo sem me dar conta. E, agora que tinha assumido um controle parcial do meu plano de voo, simplesmente não sabia para onde ir.

- E foi aí que você parou e se perguntou “o que eu quero de verdade”? – adiantei a próxima parte da história, recordando a conversa que tive com o meu pai.

- Isso mesmo, garota esperta – piscou para mim – E adivinha só! Eu não tinha a menor ideia! Eu me vestia com as peças que eram aceitas no meu trabalho, eu comia o que a empregada fazia, eu ouvia as músicas que tocavam na rádio, eu frequentava os lugares que me ex-marido achava interessante...

- E como foi que você descobriu o que queria? – fiz a pergunta de um milhão de dólares. Seria capaz de fazer qualquer coisa para conseguir aquela resposta.

- Fácil! Comecei pelo o que eu não queria – enfatizou bem a palavra não - Foi por isso que não aceitei a proposta da outra empresa. Aproveitei o dinheiro que recebi quando fui demitida e resolvi passar um tempo em casa, tomando conta das minhas coisas e, principalmente, do meu filho. Naquela época, o Alê ainda era pequeno e precisava muito de mim. E, ao invés de ficar ao lado dele, estava abrindo mão do meu papel de mãe para assumir o papel que os outros esperavam de mim. Esse foi o primeiro passo e, a partir daí, vieram todos os outros – deu o último gole na bebida que, eu ao julgar pela minha, já estava fria.

- Como assim?

- Eu recebi uma boa grana de indenização da empresa que trabalhava. Porém, para fazer que a bolada durasse mais, precisei mudar completamente o meu estilo de vida. Nada de últimos lançamentos da moda, de almoços em restaurantes, de vinhos caros, de compras em lojas de marca, de cozinheira e empregada em casa... Resumindo, nada de luxo – mexeu as mãos como se quisesse destacar a última frase – Na época, fui viver em uma casinha no centro da cidade. Só tinha sala, quarto e cozinha. Vendi quase todas minhas roupas, sapatos e móveis. Fiquei apenas com o necessário. E, nessas negociações, conheci muitas mulheres que estavam passando pelo mesmo problema que eu. Comecei a aconselhá-las, elas começaram a comentar de mim com as amigas e, em pouco tempo, tinha gente querendo me pagar para ter a minha ajuda, acredita? – ela riu, como se até hoje não acreditasse na própria sorte – Foi assim que resolvi ser coach e me especializei no atendimento de mulheres que queriam dar a volta por cima. Com o tempo, de tanto ouvi-las reclamar dos problemas que enfrentavam com os filhos adolescentes, vi uma oportunidade de negócio: poderia ganhar dinheiro e ajudá-las ainda mais. E assim o próximo passo foi dado.

- Como meu pai diz, não nade contra a maré e, se possível, surfe com a onda – repeti a frase do Mário Sérgio, a nossa conversa fazendo cada vez mais sentido para mim.

- Não estou dizendo que vai ser fácil. Demorou anos para chegar onde estou agora, mas é extremamente gratificante. A partir do momento que você toma consciência das suas decisões, não tem como o plano dar errado. Cada passo, cada queda, cada aprendizado... tudo faz parte do que você quer. Se hoje eu e meu filho nos damos bem é porque fiz uma escolha lá no passado. Tive que aprender a me virar sem babá, passar noites em claro cuidando dele sozinha, mas valeu a pena – o brilho nos olhos dela não deixava dúvida. O jeito como ela e o Alê se tratavam era tão bacana. Dava vontade de ser filha da dona Melissa só para experimentar a cumplicidade que rolava entre eles.

- Mas eu não sei bem o que quero... Só sei que não quero mais ser uma bonequinha de porcelana – desabafei.

- Esse já é o começo. Agora você só precisa pensar qual é o primeiro passo para chegar aonde você quer - disse, tentando me encorajar.

De repente, o sonho que tive antes de acordar veio à minha cabeça. Eu me esborrachando no chão, cada pedaço de mim rachado, a luz que vinha do meu interior e o público me aplaudindo, apesar do meu erro gravíssimo na coreografia. Lembrei da sensação de contentamento ao perceber que me quebrar fora a melhor coisa que me acontecera. E então, a última peça finalmente se encaixou: aquele sonho poderia se tornar realidade. Eu só precisava dizer sim e deixar o pessoal gravar o clipe da “trilha sonora” da minha vida.

- Acho que já tenho um bom caminho por onde começar – abri um sorriso presunçoso.

- Ihh... essa cara é de alguém está aprontando algo – dona Melissa brincou.

- Na verdade, não sou eu. Quem teve a ideia foi um garoto lá da escola, o Fernando, que está no meu grupo da aula de Artes junto com o Alê e a Rebeca.

- Opa! Escutei meu nome! – o skatista apareceu na cozinha, com o cabelo todo bagunçado e jeito de quem tinha acabado de acordar – Bom dia, Gabs! Bom dia, mãe. Ou boa tarde, sei lá... – ele se jogou em um banco perto de mim e estendeu a mão para pegar uma maçã que estava sobre o balcão.

- Estava contando para a sua mãe sobre a ideia do clipe – atualizei meu amigo.

- Ahh, vai ser massa... – disse antes de dar uma mordida na fruta.

- Alguém, pelo amor de Deus, me explica do que estão falando... – dona Melissa pediu antes de dar um tapa na mão do filho e repreendê-lo por comer a maçã sem lavá-la.

Enquanto resumia o plano para ela, seu rosto se iluminou de entusiasmo. Sem dúvidas, ela tinha amado a proposta.

- Agora só falta a Gabi parar de doce e aceitar logo a proposta – meu amigo me lançou um olhar sarcástico para me provocar.

- Pois eu sou capaz de apostar que ela vai dizer sim – a mãe dele afirmou com jeito de quem tem “uma carta na manga”.

Pisquei para o skatista, concordando com a cabeça.

- Desencantou? Não acredito! Já vou avisar o pessoal antes que você desista da ideia – ele levantou e disparou na direção do quarto, provavelmente para pegar o celular.

- Boa! Acho que vou pedir para o Miguel me ajudar a criar uma coreografia – me surpreendi ao perceber a minha animação. Dei um pulo do banco e já ia seguindo na direção do quarto quando dona Melissa me interrompeu.

- Hããã... Se isso envolve usar o seu celular, sinto dizer que ele está confiscado – ela comunicou com a voz firme, porém sua expressão entregava que não estava nem um pouco à vontade em me dar aquela notícia.

- Oi? Como assim? – meu mundo parou por um momento.

- É um pedido do seu pai. Uma forma de punição por você ter bebido demais na festa. A gente está aqui para te ajudar, Gabi. Mas não podemos simplesmente aceitar tudo o que você faz. Uma semana cabulando aula já foi uma falta bem grave que perdoamos. Não podemos deixar mais essa passar... – seu tom dizia que não teria chance para negociação. E, no fundo, eu sabia que eles estavam certos.

- Quanto tempo? – perguntei com a voz vencida.

- Duas semanas. E o notebook entra nessa também – ela deu o golpe fatal – Vou pedir para o Alê passar na sua casa depois para pegar. Mas o celular você já pode me entregar agora.

Senti dificuldade em respirar. Isso significava abstinência total de internet. Nada de séries, redes sociais, música... nada de nada! Ok, dessa vez eles tinham pegado pesado. Toda felicidade que sentira há pouco tempo já tinha ido embora. A vida andava empenhada em me “trollar” já fazia um tempo. Eu já deveria estar acostumada...

- Ok, te entrego já, já. Pode ser? – fiz cara de pidona.

Ela consentiu o meu “alvará” e voltei para o quarto ainda abalada com a notícia. Como eu viveria duas semanas isolada do mundo?

- Já quero ser a maquiadora oficial desse clipe – Laís gritou assim que me viu.

- Caramba! A notícia se espalhou rápido, né? – fiquei impressionada.

- A gente não brinca em serviço, Gabs – Alê se gabou - Todo mundo do grupo já está sabendo. Começamos a gravar amanhã.

- Amanhã? Miga, sua louca, vou precisar muito de você! Alguém vai ter que dar um jeito nessa minha cara de morta. Além disso, você tem que me ajudar no figurino também, porque você arrasa, né? – apontei para ela, a animação voltando a dar as caras.

Ela sorriu, bastante empolgada – E aí, gatinha? Está melhor?

- Agora estou... – fiquei um pouco sem graça ao me lembrar do meu porre – Aliás, falando nisso, como foi que eu cheguei aqui?

- Nós te resgatamos, Monster High. Em uma cena digna de filme, inclusive – o skatista disse.

- Ai meu Deus, como foi isso? – sentei na cadeira da escrivaninha, de frente para os dois que estavam na cama, bem perto um do outro, por sinal.

- Depois que pegou o gato do Gú e sambou na cara de todo o recalque no meio da pista – a morena olhou pra mim com cara de “arrasou, amiga” – você simplesmente sumiu da festa. Procuramos por toda parte e nada. Foi nessa hora que tivemos a brilhante ideia de olhar no banheiro e, bingo! Tinha uma fila gigante, a porta estava trancada e ninguém respondia. Olhei para cara do Alê e falei: só pode ser ela!

- Aí eu deixei a Laís de guarda na porta tentando falar com você e sai correndo atrás do Caio. Por sorte ele tinha uma chave reserva. Espantamos todo mundo da fila, abrimos a porta e te encontramos deitada no chão. Fiquei desesperado porque não sabia se você estava só dormindo ou desmaiada – a voz do skatista ficou tensa.

- Foi o Caio que salvou a pátria. Ele teve a ideia de juntar todo mundo para cantar o parabéns. Enquanto isso, passamos despercebidos pelo pessoal e entramos no carro. Quando chegamos em casa te demos um banho super, hiper gelado, te colocamos para dormir e ficamos vigiando para ver se não ia morrer – ela concluiu.

- Poxa, muito obrigada! – foi tudo o que consegui falar. Dizer que eu tinha os melhores amigos do mundo seria pouco. Com o Alê eu já sabia que podia contar. Mas com a Laís e o Caio eu nem poderia imaginar. Eu não tinha dúvidas que a Mari ou a Carol jamais fariam isso por mim. Ou, se fizessem, ficariam me julgando pelo resto da vida. Talvez aquele fosse mais um ponto positivo da “maré de zica” que a vida vinha me proporcionando...

- Muito obrigada nada, bonequinha! Quando eu estiver de porre, pode tratar de me colocar no carro, me trazer para casa e me dar banho – o Alê brincou.

- A parte do dar banho eu acho que posso deixar para a Laís, né? – arqueei a sobrancelha – Falando nisso, qual é o lance? – apontei para os dois na maior cara de pau.

O Alê mexeu no boné, sem graça, mas a Laís manteve sua postura de mulher decidida e assumiu a situação – Ele me contou da mancada que a tal Carol deu com ele. Dei a ideia de seguir o seu exemplo: fazer ciúme para ela. Por isso ficamos juntos na festa, fingindo que estava rolando algo.

- E estão fingindo até agora, né? – disse em tom sarcástico.

Os dois deram de ombros e desviaram o olhar. Entendi que aquilo era o máximo que conseguiria arrancar deles no momento.

- Mas já que estamos colocando as cartas na mesa, o que rola entre você e o Léo? – a Laís aproveitou para virar o jogo – E nem venha me dizer que não é nada, porque eu sei que tem. Conheço o Leonardo o suficiente para perceber quando ele está incomodado com algo. E ele estava mui-to incomodado com a sua pegação com o Gú. Tanto que veio comentar comigo e, acredite, o Léo é desencanado demais para se dar o trabalho de falar sobre qualquer coisa que não seja do interesse dele.

Mexi no cabelo para tentar ganhar tempo. Não queria falar do contrato com eles, mas sabia que teria que inventar uma história muito boa para convencê-los de que não tinha nada com o Léo. Respirei fundo e fixei meu olhar nos dois, que me encaravam na expectativa. Acabei concluindo que eles mereciam ouvir a verdade depois de todo o trabalho que dei na noite anterior.

- Estão preparados? – perguntei com um sorrisinho amarelo, tentando descontrair o ambiente.

- Sempre! – o Alê respondeu – Desembucha logo, mulher!

Tomei fôlego e contei toda a história. Claro que os dois fizeram várias interrupções e perguntaram cada mínimo detalhe. Quando terminei, o Alê soltou um assovio.

- Gabriela, quando eu disse que era para você continuar como a Natasha da música do Capital, não precisava levar o meu conselho tão a sério. Olha, preciso confessar: estou realmente impressionado com a quantidade de problemas que você consegue se meter em tão pouco tempo – o skatista balançou a cabeça fazendo cara de “você é boa mesmo nisso”.

- Mas veja o lado bom: a situação aproximou ainda mais a sua mãe do meu pai – eu estava ficando especialista em encontrar o aspecto positivo das coisas.

- Isso é... eles passaram horas no telefone quando você chegou – ele ponderou.

Lancei um olhar para ele de quem diz “eu não disse?”.

- Você está impressionado com isso? Estou passada mesmo é com a capacidade da Gabi de fazer o Léo se rebelar – a Laís entrou no assunto, os olhos arregalados confirmando que ela estava mesmo surpresa – Faz muito tempo que o Cabeludinho reclama da Vanessa, mas nunca teve coragem de terminar com ela. Lembra no Retiro quando dei em cima dele? Era uma aposta que fiz com o Gú e o Caio. Dei muito mole para o Léo, vocês nem imaginam... Mesmo assim, ele nunca deixou a entender que seria capaz de trair a Vanessa. Aí vem a Gabi, e BANG! Faz o menino sair da casinha! Arrasou, garota!

- É, mas pelo que vi na festa, o período fora da casinha já acabou, né? – Alê olhou sério para nós duas, como se quisesse nos trazer de volta à realidade.

- Isso é verdade... – a morena balançou a cabeça, refletindo – Na boa, Gabi... Não acho que exista nenhuma chance do Léo terminar com a Vanessa. Eles vivem brigando, ele adora reclamar dela, mas nunca se separam de verdade – ela me olhava com uma expressão triste, como se soubesse o quanto aquelas palavras machucavam – Para ele, é mais fácil viver reclamando do que terminar e encarar a vida sozinho, sabe? Os dois estão juntos há muito tempo, o Léo já acostumou ter a Vanessa sempre ali, disponível.

Tentei fingir que não me importava, mas cada frase que a Laís dizia parecia um faca entrando cada vez mais fundo no meu coração. Mas, dessa vez, era uma dor diferente. Na época do Edu, por exemplo, o sentimento era que eu tinha feito algo errado, que a situação tinha me escapado entre os dedos. Era mais a culpa, o ressentimento e a vergonha de ter vacilado e deixado que outras pessoas assumissem as rédeas da situação.

Agora a dor era mais profunda... genuína. Parecia que a minha temperatura tinha caído vários graus. Meu coração estava frio. Cada parte do meu corpo doía, minha respiração parecia mais densa e minha boca mais seca. Era como se uma peça importante tivesse se soltado e eu precisasse encontrar uma maneira de manter tudo rodando mesmo sem ela.

Um silêncio constrangedor tomou conta do quarto. Engoli em seco e, não sei de onde, tirei forças para continuar a conversa.

- Vamos mesmo começar a gravar o clipe amanhã? – mudei de assunto, minha voz um tom abaixo do normal.

- Sim. E a propósito, queremos começar a gravar na escola de dança da sua mãe. Você ainda tem a chave, né? – o Alê percebeu a deixa para mudar de assunto.

- Oi? Como que é?

Os dois me explicaram a ideia inicial, empolgados. Acabamos passando o resto do dia acertando os detalhes, Fernando e Rebeca participando da discussão por WhattsApp.

Aquele trabalho me ajudou a deixar o lance com o Léo um pouco de lado. Por mais que uma dorzinha chata insistisse em me incomodar, era muito bom estar envolvida em algo que eu realmente queria fazer parte. Era como dizia a letra da música: eu continuaria em frente. Afinal, não poderia parar, e nem pararia de me mexer.

Já eram quase oito da noite quando terminamos de esquematizar tudo. Toda turma se reuniria no dia seguinte na casa do Alê, onde almoçaríamos e passaríamos o resto da tarde trabalhando.

Aproveitei os últimos minutos que me restavam com o meu celular para chamar o Miguel para me ajudar. Claro que ele brigou comigo por eu ter me afastado, mas topou participar do clipe de pronto. Depois disso, entreguei meu aparelho para dona Melissa, que o guardou no seu escritório prometendo cuidar bem dele.

No fim do dia, acabei agradecendo pela resseca. O mal-estar ainda era tanto que, na certa, cairia na cama e dormiria imediatamente. Sem tempo para pesadelos ou ressentimentos por causa do Léo.

- Gabi, vou levar a Laís em casa e, na volta, passo na sua casa para pegar o notebook, beleza? Já vai se despedindo da vida online, bonequinha – meu amigo zuou com a minha cara enquanto nos preparávamos para sair. Depois de passar o dia usando a camiseta do Alê como vestido, achei que seria melhor não voltar para casa daquele jeito. Não queria arrumar mais problemas, pelo menos não por enquanto, então coloquei a roupa que usei na festa.

- Beleza! Mas você vai ter que buzinar, porque não tenho mais celular para você ligar – respondi, enquanto me afastava deles. Os dois caminhavam juntos em direção à garagem e precisei virar o corpo para conseguir vê-los enquanto seguia na direção oposta.

Estava tão distraída que não percebi quando esbarrei em alguém. Quase fui ao chão, mas um par de mãos ágeis me segurou, colocando-me de pé novamente.

- Parece que estou sempre no seu caminho, hein Gabi? – uma voz conhecida comentou com o seu inconfundível jeito irônico.

Virei meu rosto e encarei os olhos de tempestade diante de mim. Não precisei de muito tempo para entender que ele se referia ao dia que nos conhecemos, quando eu também tropecei e quase cai em cima dele.

Minha vontade era de me soltar, sair correndo e só parar quando estivesse bem longe dele. Mas me obriguei a respirar fundo. Eu não era mais frágil e estava na hora dele saber disso.

Fiz uma pausa para arrumar o cabelo e, com o sorriso mais provocador que eu tinha, respondi – Deve ser porque você não resiste ao meu charme natural. Aí quando percebe, já está cruzando o meu caminho de novo - me soltei com calma e continuei meu caminho, deixando o Laís e o Alê embasbacados e um carioca sem resposta.
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Notas finais: Só eu que achei que a terceira fase já começou prometendo fortes emoções?

Vai ter clipe, vai ter show do Jorge e Mateus, tem a volta do Edu, tem o Léo vacilando, tem LaLe e, principalmente, tem Gabi querendo dar a volta por cima.

Genteeee do céu, socorro! Se a segunda fase foi movimentada, imagina o que vem por aí!

Já estou morrendo de ansiedade para o próximo capítulo. E vocês?

Beijo grande e a gente se vê no cap 31!

PS: Já ia esquecendo de falar! A história da Melissa foi inspirada em uma coach e uma terapeuta que eu acompanho e AMO! O nome delas é Flávia Melissa (não, o nome não é concidência! rs!) e Paula Abreu. Elas são MARAS, gente. Recomendo muito para quem curte esse lance de desenvolvimento pessoal.

E a “carreira” de vlogger do Alê também teve inspiração. Conhecem o Cristian Figueiredo? Sim, foi nele mesmo que me baseei, inclusive para escrever a parte do vídeo que fala sobre “como saber se o cara está afim de você”.
É isso, só queria dar os devidos créditos. =)


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