segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Capítulo 24 – O mundo dá voltas

Notas iniciais: Todo mundo pronto para conhecer o pai da Gabi?
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[No capítulo anterior:

- Já disse que está de castigo e não pode sair. Se bem que... – mexeu o corpo, desconfortável – Esse problema em breve estará solucionado. Você não queria morar em Nova York? Então já podemos cuidar de todos os detalhes da mudança com o seu pai – vi minha mãe apontar para o senhor ao lado dela e quase cai para trás de susto.

Então aquele era meu pai?]

Meu olhar correu de um para o outro enquanto tentava processar a informação. Eu tinha 17 anos e, até então, vira poucas fotos do meu pai. Só sabia que de aparência ele era bem parecido comigo: os mesmos olhos castanhos, os cabelos finos e lisos, a pele alva. Mas sempre o imaginara como um velho sério e fechado, que ficava escondido atrás de uma mesa, “mexendo seus pauzinhos” para controlar as ações na bolsas e assim contar uma quantidade “infinita” de dinheiro. Algo parecido com o Tio Patinhas da vida real...

Porém, o que estava na minha frente era um homem com aparência jovem - apesar da idade - elegante e que parecia pronto para fazer uma viagem de volta ao mundo ou qualquer coisa ousada que lhe desse na telha.

- Oi – falei sem saber como agir. Como se cumprimenta o pai que você nunca viu, afinal? Eu deveria abraçá-lo? Dar um beijo no rosto, apertar sua mão? Por que não ensinavam esse tipo de coisa na escola?

- Bom, agora que as apresentações já foram feitas, acho que vocês podem sentar e conversar. Assim já vão se familiarizando um com o outro – dona Beatriz falou com a voz carregada de sarcasmo antes de subir a escada e me deixar sozinho com aquele cara estranho que dizia ser meu pai.

Um silêncio estranho tomou conta do lugar. Encarei o chão, como se quisesse encontrar ali a solução para aquela situação constrangedora.

- Ela continua a mesma. A Bia sempre foi “fogo na roupa”... – ouvi o tal Marco soltar uma risada baixa.

Mexi no cabelo bastante sem graça. Era estranho pensar na minha mãe e no meu pai juntos sendo que agora eles mal se falavam.

- Mas vamos ao que interessa – ele juntou as mãos em frente ao corpo assumindo a postura de um palestrante – Então quer dizer que você quer ir para Nova York? Essa decisão tem alguma coisa a ver com tudo o que aconteceu nas últimas semanas ou já era um desejo antigo? – pousou o olhar em mim demonstrando interesse.

- Hããã...  - mexi no cabelo novamente, bastante sem jeito – faz um tempo que penso em fazer intercâmbio. Estudo inglês há muitos anos... Seria bom colocar esse conhecimento em prática.

- E agora que tudo virou uma bagunça, o que era apenas uma ideia virou algo essencial? – disse sem nenhum rodeio, o que fez minha cara quase ir lá no chão. Não queria que ele pensasse que estava o usando como rota de escape, por mais que a ideia fosse bastante verdadeira.

- Gabriela, filha... – fez uma pausa, absorvendo o impacto daquela palavra. Dava para perceber que a situação era bem estranha para ele também, por mais que tentasse disfarçar – fica tranquila. É normal que às vezes tudo saia dos eixos e vire de ponta cabeça. Muito mais normal do que as pessoas pensam ou admitem. Não pense que estou bravo, chateado, surpreso ou decepcionado porque você acabou se enrolando um pouco... Na verdade, acho que ficaria decepcionado se você terminasse o ensino médio com uma ficha completamente limpa. Aí sim eu ficaria desolado – riu, me fazendo sorrir também. Achei interessante o jeito que abordou a situação. Até o momento todo mundo tinha transformado o acontecido em um drama digno de novela mexicana – inclusive eu. Era bom ouvir de alguém que o acontecido não significava o fim do mundo.

- Cuidado, posso acabar me empolgando e chutando ainda mais o balde – consegui deixar um pouco a tensão de lado e brincar um pouco.

- Esse é o espírito – apontou o dedo para mim, divertindo-se – Mas você não me respondeu: quer ir para Nova York para fugir ou por que é o que o seu coração está pedindo?

Fiquei em silêncio por alguns segundos, tempo suficiente para que ele descobrisse sozinho a resposta.

- Gabriela, saiba que a minha casa em Nova York está de portas abertas. Você pode ir e ficar por quanto tempo quiser. Mas fugir nunca foi a melhor opção. Sei que talvez não seja a pessoa mais indicada, mas eu quero te ajudar. Se você permitir... – propôs com a voz calma.

- Você não é a primeira pessoa que me fala isso – soltei uma risada sem muito ânimo. Alê também havia batido na mesma tecla que eu precisava enfrentar meus problemas.

- Estou curioso para saber quais outros conselhos já ouviu, mas... – fez uma pausa para checar as horas – já está tarde, você tem aula logo cedo e confesso que estou um pouco cansado da viagem. Será que podemos almoçar juntos amanhã? Aí você aproveita e mostra a cidade. Faz anos que não venho aqui.

- Hum... pode ser – concordei sem muita convicção. Quão estranho seria almoçar com um pai que você acabou de conhecer?

- Acho que você terá que fazer às vezes de anfitriã, já que sua mãe resolveu que não se mistura com as “gentalhas” – comentou de modo irônico.

Até então eu não tinha me dado conta que precisaria ajudá-lo a se instalar no quarto de hóspedes. Ai, droga! E agora?

- Nossa, é mesmo! Acho que se minha mãe estivesse de bom humor ela teria te oferecido algo para comer e perguntado se queria tomar um banho – pelo menos era o que ela sempre fazia quando algum parente fazia uma visita.

- Acho que fico com o banho e depois cama – respondeu, mantendo o tom de voz cortês.

- Bom, não sou muito boa nisso, mas o quarto de hóspedes é lá em cima do lado do meu. Acho que pode ficar lá – fiz sinal para que me acompanhasse. Subimos em silêncio, ele carregando as malas sem muito esforço.

Só precisei acender a luz para perceber que a Maria havia passado por ali. O quarto estava com cheiro de limpo, com roupa de cama nova e toalhas cuidadosamente dobradas sobre uma cadeira perto do banheiro. Agradeci mentalmente a eficiência da nossa empregada. Cuidar daqueles já era chato. Em uma circunstância como aquela seria, no mínimo, esquisito...

- Bom, acho que vou deixá-lo descansar – disse para tentar fugir dali o mais rápido possível.

- Que horas te pego amanhã? – perguntou enquanto mexia nas malas e tirava roupas e objetos pessoais lá de dentro.

- Amanhã saio às 13h30.

- Ok. Me espere na frente do colégio, ok? – ele sorria de jeito amigável, mas o modo como falava transmitia uma certa firmeza, como se ele não quisesse impor sua vontade, mas ao mesmo tempo não deixasse espaço para dúvidas sobre as suas intenções.

- Hum... ok - foi tudo o que consegui dizer. Confesso que estava um pouco impressionada com aquele homem.

- Boa noite, filha – se despediu, ainda com um sorriso caloroso nos lábios.

- Boa noite... pai – a última palavra demorou a sair. Quando fechei a porta e caminhei para o meu quarto, tinha impressão que estava vivendo em uma realidade paralela. Nada daquilo parecia ser a minha vida. Afinal, quando imaginei que meu pai estaria dormindo no quarto ao lado do meu?

Depois de tomar um banho e colocar o pijama, apaguei a luz e me joguei na minha cama. O cheiro do Léo ainda estava ali, o que me fez recordar a nossa conversa. No fim das contas, fiquei aliviada por ele já saber a verdade. Era melhor que não houvesse segredos entre nós. E se, mesmo ciente de tudo, ele ainda quis ficar comigo, seu gesto poderia ser considerado como um bom sinal, não poderia? Sem falar no seu jeito carinhoso e atencioso. Eu sabia que nosso acordo não envolvia sentimentos, mas era difícil não me deixar levar. Se ele continuasse daquele jeito, eu teria que tomar muito cuidado para não me envolver mais do que deveria...

Tentei esquecer todos esses problemas e dormir, mas as novidades do dia não paravam de ir e vir na minha cabeça. A terça-feira prometia fortes emoções com a repercussão do vídeo do Alê na escola, o Jogo do Engana Trouxa que com certeza continuaria acontecendo e o almoço com meu pai.

No meio de tantos pensamentos, um me chamou atenção: será que todas essas novidades significavam um recomeço? Fechando os olhos pedi a Deus que sim, e que fosse apenas as primeiras páginas de uma história novinha em folha.

***
- Quer dizer que você realmente vai para Nova York? – Alê me questionou depois de ouvir as últimas novidades. Estávamos na escola, sentados no nosso cantinho de sempre do pátio esperando a aula começar. Graças ao vlog, eu e meu amigo nos tornamos “O” assunto do momento do colégio. E claro que aproveitamos a ocasião para colocar o nosso jogo predileto em ação. A missão do dia era interpretar que estávamos ocupados e entretidos demais com os nossos próprios assuntos e, por isso, não ligávamos para as pessoas ao redor. Para tornar tudo mais real, nós dois conversávamos gesticulando como duas pessoas extremamente inteligentes e focadas, apontando para “informações invisíveis” nos nossos celulares e arqueando as sobrancelhas como uma pessoa refletindo sobre algo muito importante. Quem via de longe, com certeza, imaginava que parecíamos dois intelectuais.

- Calma! Não sei ainda. “Papi soberano” não confirmou nada. Só veio com aquele papo que não devo fugir e que quer me ajudar...

- Poxa, se rolar mesmo, vou ficar sozinho aqui – Alê confessou me olhando com cara de cachorro sem dono.

- Ai meu Deus, falando assim já começo a mudar de ideia – passei um braço pelo seu ombro, improvisando um abraço.

- Mas é sério, Gabs. Tô pensando em viajar também. Não quero ficar aqui, prestar vestibular, fazer cursinho e todas essas coisas que todo mundo sonha...

- Como não? E vai fazer o quê? – lancei um olhar questionador em sua direção.

- Não sei ainda. Mas já tenho certeza do que não quero. Já é um bom começo, não é? – disse em tom brincalhão.

- É melhor do que nada... – concordei, rindo.

- Mas e você? Vai ficar em Nova York para sempre? Ou pretende voltar? Vai querer fazer facul e essa baboseira toda?

- Estou na mesma que você, amigo. Não faço a mínima ideia. Minha vida antes parecia tão certa: mesmas amigas de sempre, mesmo balé de sempre, morar com a mesma mãe de sempre... Mas agora... – mexi as mãos, tentando mostrar que nada mais estava no lugar.

- É Gabs, não sei quem está pior: eu ou você – o skatista soltou um riso amargo.

- Eu, com certeza. Você tem a fofa da sua mãe, tem o seu skate que você ama, tem o seu vlog, criado a partir de uma ideia que você curte... Eu não tenho nada, entende? Tudo virou fumaça – resumi minha situação sem muita empolgação.

- Ai meu Deus, que dramática! – ele riu para amenizar a situação – Relaxa, tudo vai dar certo. Mas enquanto você não sabe para onde quer ir, que tal me dar uma ajuda, hein? – disse, me oferecendo seu melhor sorriso amarelo.

- Se aproveitam da minha nobreza... – fingi estar brava.

- É que uma garota deixou um comentário interessante no meu vídeo. E acho que seria uma boa gravar o próximo vlog respondendo essa menina – explicou.

- Cadê o comentário? Deixa eu ver – pedi.

Ele pegou o celular, abriu o seu canal e rolou a página até o ponto onde queria – Aqui, ó...

Peguei o aparelho e me concentrei na mensagem.

“Alê, adorei o vídeo. Espero que o vlog seja um sucesso! Você tem um jeito muito engraçado e, pelo jeito, não tem medo de expressar aquilo que todo mundo queria falar, mas tem vergonha. Agora sobre as garotas não chegarem nos garotos, posso te garantir que pouco tem a ver com o medo de perder a honra. Rs! Na verdade, pelo menos no meu caso, é mais receio de se envolver com uma pessoa que só quer “aquilo”, entende? A gente até queria se soltar mais, mas vocês são especialistas em nos enganar. Aí fica difícil, né?

- Nossa, será que ela conhece o Edu? – perguntei, caprichando na ironia.

O Alê riu tanto do comentário que até colocou a mão na barriga – O que acha do tema do próximo vídeo ser “cinco sinais que o cara está realmente afim de você”? – propôs quando conseguiu recuperar o fôlego.

- Acho ótimo! Inclusive, serei a primeira a decorar todas as dicas. Acho que vou até tatuar para garantir que não vou esquecer – brinquei.

- Então bora trabalhar nesse roteiro – meu amigo disse todo empolgado.

Subimos para a sala e aproveitamos os momentos de intervalo entre as aulas para pensar no roteiro e em maneiras de deixar o vídeo mais interessante. Tentei ao máximo prestar atenção no que os professores falavam. Porém, o desafio maior era fazer o Alê ficar quieto e focar na classe também. Mas mesmo com todos os meus esforços, ele sempre acabava se distraindo e me fazendo desviar atenção também.

Tínhamos tanta coisa para pensar que, no fim, nem foi tão difícil colocar o plano de fingir estar muito ocupado com os próprios problemas em prática. O dia seguia tranquilo até que a Mari se aproximou de nós na hora da saída.

- Então você é desses que grava vídeos? – ela lançou sorriso forçado em direção ao meu amigo.

- Você viu, colega? Sou desses... – ele concordou sem dar muita moral.

- Está querendo ficar famoso, é? – ela insistiu.

- Não, só estou querendo tirar uma onda mesmo – deu de ombros.

- Hum... Até que ficou legalzinho – seu tom de desdém era extremamente irritante.

- É, aos poucos a gente vai melhorando, né Mari? – disse com jeito de quem quer encerrar o assunto.

- Nossa Gabi, você está no colégio? Nem reparei – lançou o olhar na minha direção, fingindo só ter me notado agora.

- Pois é, Marília. É que não costumo chamar tanta atenção como você – disse, tentando imitar a postura indiferente do meu amigo. Minha vontade era sair logo dali e ir para bem longe daquela “falsiane”. Mas um estalo surgiu na minha mente e me fez lembrar do Jogo do Engana Trouxa. Mais do que nunca era hora de assumir um papel e virar aquele jogo – É que, no fundo, não curto muito esse lance de ficar se mostrando por aí. Acho isso coisa de palhaço. As bailarinas costumam ser mais sutis... – imitei o seu olhar de desdém, antes de puxar o braço do meu amigo de leve e continuar andando em direção à saída.

- Caraca, Gabs! Mandou muito bem agora. Viu a cara da loira azeda? – Alê comentou eufórico assim que alcançamos uma distância segura para que ela não nos ouvisse.

- Mais um ponto para a Equipe B! – levantei a mão para um hi-five.

- Já pensou em ser atriz, Gá? Cara, o jeito que você olhou para ela foi demais. Se eu não te conhecesse, poderia jurar que você tinha passado para o lado negro da força.

- São as aulas de interpretação, né? Ajuda bastante nessas horas – expliquei.

- Acho que você também deveria fazer um vlog – ele sugeriu.

- Não sei... Não tenho essa tranquilidade que você tem... – comentei – Eu até posso ter sambando na cara das “falsianes”, mas era só um papel, saca? Já você é diferente. Ela não te atinge.

- É que eu nunca dei importância para o que ela fala – ele deu de ombros, tranquilo.

- Bom, é melhor deixar a Marília para lá – mexi no cabelo, de repente me sentindo insegura – É hora de encarar o almoço de pai e filha – anunciei ao ver o Marco Sérgio parado do outro lado da rua. Um táxi estacionado ali perto dava a dica de qual seria o nosso meio de transporte.

- Bonitão o seu pai, hein Gabs? O “coroa” anda na estica – ele disse depois de uma análise rápida.

Realmente, “papi soberano” estava um arraso: bermuda mais no estilo social, camisa listrada, sapatênis e óculos ray-ban.

- Superfilha, ativar! – brinquei antes me despedir do meu amigo.

- Beleza. Vou tentar adiantar o vídeo. Depois te mostro como ficou, belê?

- Fechado! Ansiosa para ver essas dicas – gritei de volta enquanto atravessava a rua. Quando me aproximei do Marco Sérgio, senti um frio estranho na barriga. Era como viver o primeiro dia de aula do primário de novo. Tudo era novo e inusitado.

- Como foi a aula? – ele perguntou de modo gentil antes de aproximar e dar um beijo na minha bochecha.

- Tranquila... – disse sem muita empolgação.

- E o clima? Sua mãe comentou sobre bullying...

- Algumas pessoas me olham de um jeito estranho, eu escuto comentários não muito legais e, de vez em quando, preciso encarar meninas rindo de mim no banheiro. Mas acho que o pessoal já está perdendo o interesse na minha história – resumi.

- Melhor assim. Vamos, então? Perguntei para o taxista e ele disse que tem um restaurante ótimo perto do Pau D’alho. Faz muito tempo que não vejo aquela beira de rio. Estou com saudades – ele colocou a mão suavemente no meu ombro e caminhamos juntos em direção ao carro. Depois que nos instalamos, o táxi deu partida em direção ao centro.

Durante o percurso, ele foi comentando sobre como a cidade tinha mudado e contou algumas histórias sobre a época que morou ali. Não falei muito, me concentrei mais em ouvir e tentar descobrir se ele se arrependia de ter largado tudo e ido para Nova York. No pouco tempo que ficamos no carro, tive a ligeira impressão que o homem ao meu lado era uma pessoa forte e decidida, mas que aprendeu com o tempo que “há que endurecer-se, mas sem jamais perder a ternura”.

Paramos em um restaurante especializado em peixes em frente ao Pau D’alho, uma das principais praças da cidade na beira do rio Paraíba do Sul. O local fora batizado desse jeito por causa de uma árvore que existia ali que cheirava a alho. Com o tempo, o ponto foi se popularizando e ganhou estrutura adequada para receber o número crescente de visitantes. Além da bela vista para o rio, pontes suspensas davam acesso a pequenas ilhas no meio do rio onde era possível caminhar por trilhas cercadas por vegetação nativa. O cenário era o tipo ideal para um passeio no fim de tarde, onde você pode parar e simplesmente conversar sobre a vida.

Escolhemos uma mesa bem em frente à rua, da onde era possível ver a movimentação na praça e as árvores na beira do rio.

Meu pai escolheu um peixe ao molho que eu nunca tinha provado, acompanhado de salada caprichada e fritas. Nós dois pedimos suco de laranja para beber e continuamos conversando. Ele se mostrou bastante interessado na minha vida. Perguntou sobre a faculdade que gostaria de cursar, disse que viu alguns vídeos da apresentação de Romeu e Julieta e quis saber detalhes sobre a preparação para a apresentação e perguntou até quem era o garoto que estava comigo na saída da escola. Tive a impressão que ele desconfiou que se tratasse do Edu e imediatamente entendi que, mais cedo ou mais tarde, teria que falar do carioca com ele. Que Deus me ajudasse nessa hora, porque se já não era fácil para uma filha falar de assuntos íntimos com um pai, conversar sobre esse assunto com um pai que você acabara de conhecer não deveria ser nada agradável.

O almoço estava tão delicioso que não me aguentei e acabei exagerando um pouquinho. O que me fez lembrar que eu precisava urgentemente fazer alguma atividade física para queimar todas aquelas calorias. Mais um item para as coisas que precisava acrescentar à lista de “assuntos pendentes”.

Depois que terminamos de comer, meu pai propôs um passeio pelas trilhas na beira do rio. Ele comprou um sorvete para tomar durante a caminhada enquanto eu fiquei na água.

- Você disse que a situação na escola está sobre controle...

Lá vinha a tal conversa. Respirei fundo para tomar coragem. Mas por algum motivo, eu não me sentia tensa, nem com vontade de evitar falar sobre o Edu a qualquer custo, como costumava acontecer. Eu me sentia tranquila, o que não acontecia há algum tempo.

- Sim, é como falei. Ainda tem gente que me olha estranho e faz comentários maldosos, mas o Alê, o amigo que comentei – expliquei para que pudesse se situar – tem me ajudado muito. Ele inventou um jogo e aí acabou que tudo virou uma grande piada... O começo foi bem complicado – fiz uma pausa, lembrando da cena no banheiro – mas agora aprendi a me defender.

- Um jogo? Que tipo de jogo, exatamente? Por acaso não envolve objetos cortantes, pontiagudos ou qualquer coisa que possa causar dor em alguém, né? – lançou um olhar desconfiado na minha direção fingindo estar preocupado.

- Não, tudo absolutamente sem violência – disse de forma solene me esforçando muito para conter o riso.

Ufa... Já fico mais tranquilo – soltou o ar de forma teatral – Mas então como funciona esse tal jogo?

Paramos em uma das pontes e, enquanto observávamos o rio correr, contei para ele sobre o Jogo do Engana Trouxa e alguns episódios que precisei assumir a personagem da “Gabriela que não liga para a opinião alheia” para dar “o troco”. Também falei sobre o plano de contra-ataque que consistia em usar o vlog do Alê para zoar algumas situações que aconteciam no colégio.

- Muito criativo esse seu amigo. Um ótimo jeito de dar a volta por cima sem prejudicar ninguém. Gosto dessa atitude – acenou com a cabeça e sorriu, parecendo muito satisfeito.

- Alê é uma pessoa muito especial – falei de forma carinhosa.

- E quanto as suas amigas que espalharam esse boato? Como você está lidando com isso?

Parei por um momento fingindo estar prestando atenção no rio – Sinto falta delas – confessei, por fim – É estranho não ter mais com quem comentar as séries, livros ou fazer fofoca sobre o pessoal da escola... Às vezes me sinto meio perdida, sem saber para onde ir.

- É normal se sentir assim. Você cresceu com essas garotas e elas se tornaram sua única referência como amigas. Mas fica tranquila! Tem uma frase que diz que ninguém é insubstituível, o que é uma afirmação absolutamente verdadeira. Sei que é estranho agora, mas tenta pensar que se isso não acontecesse, você e o Alê não teriam pensado no vlog, nem no Jogo do Engana Trouxa e talvez não estariam tão próximos como estão agora... – ele falava com a calma e a segurança de alguém que já passou por uma situação parecida.

Um sorriso surgiu no meu rosto quando me lembrei da semana no retiro e do contrato com o Léo. Situações que eu jamais teria vivido se não tivesse deixado o Gueto.

- Acredito que esse é o jeito que o universo encontra para nos dizer que podemos ser muito mais do que acreditamos. É como se ele puxasse o nosso tapete de propósito, só para nos fazer levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima – completou apoiando os braços sobre as grades da ponte.

- Nunca pensei dessa forma. Mas fica mais fácil de encarar olhando por esse ângulo – avaliei.

- Tudo sempre acontece por uma razão, filha. Pode parecer papo de autoajuda, mas é verdade. Existe muita coisa boa por aí, a gente só precisa aprender a encontrá-las – piscou para mim – Mas e o garoto que causou toda essa intriga? Ele nunca mais te procurou?

A pergunta me pegou de surpresa. Passei a mão no cabelo, desconfortável. O Edu estava muito longe de ser o meu assunto predileto.

- Só pela sua cara dá para imaginar que não... – ele riu, tentando quebrar o clima pesado.

- É que é estranho... Eu nunca entendi o que o Edu queria comigo. Em alguns momentos acreditava que estávamos nos dando super bem e em outros achava que estava fazendo papel de trouxa – desabafei.

- Mas por que você tinha essa dúvida? – ele me perguntou. Achei graça o jeito que ele falou. Parecia que éramos duas amigas conversando sobre garotos.

- Porque quando ele estava comigo, me tratava como se eu fosse a garota mais legal do mundo inteiro. Mas na frente dos outros, era diferente. Parecia que ele tinha vergonha de ficar ao meu lado... – desabafei – E ainda tinha a Marília para deixar tudo ainda mais complicado.

Ouvi meu pai rir, o que me fez olhar para ele de um jeito confuso.

- Calma! Não me mata! – ele tentou se controlar, antes de voltar a falar – É que vocês mulheres imaginam que nós homens somos sempre fortes, decididos e que estamos sempre prontos para salvar o mundo. Na verdade, também temos as nossas inseguranças e medos, sabia? Veja bem, não estou defendendo esse garoto. Talvez ele realmente tenha sido um idiota e perdido uma ótima chance de ficar com uma garota bacana. Mas é que todos nós estamos aprendendo o tempo todo, entende? Talvez você só precise tentar entender que, do mesmo jeito que você, ele também poderia estar confuso – me olhou, tentando descobrir se eu estava acompanhando o seu raciocínio.

Balancei a cabeça refletindo sobre o assunto – É, talvez você tenha razão. Ele tinha acabado de chegar na cidade, devia estar meio perdido, e aí as coisas foram acontecendo muito rápido, a Mari se meteu no meio...

- O que essa tal de Mari fez, afinal? – perguntou, de novo me fazendo pensar que estava conversando com uma amiga.

Fiz um resumo de todas as “artimanhas” da Mari, contei sobre a festa no Gueto que o Edu ficou com a Nathália e também da nossa última conversa no Whats - Enfim, e foi isso o que aconteceu – disse depois que terminei – Mas, mesmo com o que você falou, continuo na dúvida. O que ele queria de mim, afinal?

- Acho que essa não é a pergunta mais importante que você precisa fazer – ele levantou o dedo para chamar minha atenção – Não importa o que ele quer, e sim o que você deseja. O que você espera da sua vida, Gabriela? É viver cercada de amigas não tão fiéis o quanto você imaginava e ao lado de um cara que não está pronto para oferecer o que você deseja?

Mexi a cabeça, negando.

- Mas então, o que é? Você não pode descobrir o que se passa pela cabeça desse tal de Edu, mas pode decidir o que você quer, com quem quer estar, o que deseja fazer, até onde quer ir. Essas perguntas só você pode responder... – seu tom era amigável e carinho. Fiquei imaginando se era daquele mesmo jeito que todos os pais falavam com suas filhas.

- E como faço para encontrar essas respostas? – fixei meu olhar no seu, desejando muito descobrir encontrar a solução para as minhas dúvidas.

- Elas estão todas aqui – pousou dois dedos suavemente sobre o meu coração – Você só precisa aprender a ouvi-lo.

Seu toque causou uma sensação estranha, um tipo de conforto que sentimos quando temos com quem contar.

- E como você sabe de tudo isso? – perguntei depois que ele tirou a mão.

- Porque eu aprendi tudo isso na marra – um leve indício de tristeza passou pelo seu rosto, indicando que talvez aquele aprendizado não tenha sido tão fácil – Quando fui para Nova York, eu construí uma carreira de sucesso. Consegui um emprego em um banco e cuidava exclusivamente dos clientes que queriam investir na bolsa de valores. Com o tempo, desenvolvi um felling muito bom e me tornei um dos melhores na área. Todo mundo queria investir comigo. Construí uma vida confortável em pouco tempo: apartamento na melhor área da cidade, carro bacana na garagem, jantares nos melhores restaurantes... Isso chamou atenção dos chefões, que resolveram me colocar como gerente do setor. Aceitei a tarefa achando que seria fácil. Eu só precisaria distribuir as tarefas para o pessoal e pronto. Eu era muito egoísta nessa época, só pensava em mim e no quanto teria de lucro – fez uma pausa para encarar o rio, mexendo as mãos de modo nervoso – Não demorou para eu descobrir que lidar com pessoas era muito mais difícil do que com números. Eu poderia até prever quais ações e investimentos seriam mais rentáveis naquele momento, mas nunca consegui entender como uma mulher de TPM pode ser tão perigosa. Sério, o verdadeiro poder que move o mundo é a TPM. É ela quem faz uma mulher colocar o homem para fora de casa, começar uma guerra, comprar uma casa – soltou uma risada gostosa, relaxando um pouco – Mas enfim, voltando... O ponto principal é que não adiantava colocar milhões de reais na mão de um funcionário desmotivado. Se o cara não está afim, ele perde prazos, não se atenta aos detalhes, não coloca amor no que faz, entende? E como eu era muito prepotente, a minha equipe me odiava. Logo, não rendiam o que poderiam render e começamos a ter prejuízos terríveis. Os chefões não ficaram felizes e ameaçaram me tirar do cargo. Orgulhoso, resolvi batalhar com unhas e dentes por aquele emprego. Fiz várias pesquisas, revisei relatórios, passei a acompanhar cada passo do trabalho do pessoal para tentar achar onde eu estava errando. No final das contas, descobri que o problema não era operacional ou de cálculos. O problema era eu mesmo. Eu precisava aprender a lidar com a minha equipe se quisesse voltar para o topo. Então, mergulhei fundo em questões pessoais, aprendi sobre trabalho em equipe, motivação e desenvolvimento pessoal... eu mudei o meu mundo. E o resultado é isso – apontou para si mesmo – um cara que hoje encara a vida com muito mais empatia, amor e que entende que o melhor é quando todos ganham.

Fiquei impressionada com o que eu ouvi. Então ele, um dia, realmente foi a pessoa que imaginei: um cara que ficava atrás de uma mesa contando dinheiro e olhando para todo mundo com ar arrogante. Analisando para meu pai agora, era muito difícil acreditar que aquilo poderia ser verdade. Isso que eu chamava de mudar de vida...

- Acabei mudando de área e me tornei um coach reconhecido. Hoje, ganho dinheiro ajudando as pessoas a conhecerem a si mesmo, identificarem seus pontos fortes e viverem aplicando o máximo do seu potencial em todos os setores da sua vida, como o profissional. familiar, relacionamentos... - por mais que tentasse permanecer indiferente, dava para identificar uma nota de orgulho em sua voz. Ele com certeza gostava muito do que fazia – Hoje, filha, posso dizer que sou feliz não só porque tenho sucesso, mas porque colaboro para que todos que me procuram também alcancem seus objetivos. A única área da minha vida que eu ainda não estava 100% contente com o meu desempenho era o familiar. Tentei várias vezes me reaproximar, mas sua mãe nunca permitiu. Por isso fiz questão de vir pessoalmente quando ela me ligou para dizer que você estava com problemas. Enxerguei isso como uma oportunidade de reaver meus erros do passado e fazer as pazes com a minha família. Gabriela, já errei e fui muito egoísta na minha vida. Mas é como disse, todos nós estamos aqui para aprender. Espero poder te ajudar a passar por tudo isso e espero que me ajude a ser o pai que não fui por todo esse tempo. O que acha? – piscou para mim em tom amigável.

- Acho que podemos tentar – respondi com um meio sorriso. Ainda era cedo para afirmar qualquer coisa, mas pelo menos a nossa relação tinha começado com o pé direito – Acho legal esse lance de coach. A mãe do Alê, a dona Melissa, também trabalha com isso.

Continuamos conversando mais um pouco antes de pegar um táxi e voltar para o condomínio. Para não causar constrangimentos para a minha mãe, meu pai havia se instalado em um hotel naquela manhã antes de me buscar no colégio. Mesmo assim, fez questão de me acompanhar até em casa.

Assim que entramos na rua onde morava, vimos o Alê andando de skate. Descemos do carro e chamei meu amigo para que apresentá-lo ao meu pai.

- Alê, esse é o Marco Sérgio. Meu pai – disse enquanto um apertava a mão do outro.

- É um prazer conhecê-lo, rapaz. Gabi me falou muito bem de você.

- Tem que falar mesmo. Não é fácil aguentar a Monster High – o skatista brincou.

Nesse momento, dona Melissa apareceu dirigindo seu carro. Depois de estacionar em frente a sua casa, veio em nossa direção com o seu melhor sorriso no rosto.

- Gabi, querida, quanto tempo não te vejo. Somos vizinhas, mas só sei notícias suas pelo Alê – ela me deu um beijo e um abraço carinhosos. Só então dirigiu o olhar para o meu pai.

- Marco Sérgio Bueno? – franziu a testa como se não acreditasse no que estava vendo – Nossa, adoro seu trabalho como coach. Já li dois dos seus livros. O que faz por aqui?

- Vim visitar minha filha - meu pai respondeu, apoiando a mão sobre o meu ombro.

- Não acredito! Gente, mas que universo pequeno – dona Melissa colocou a mão no rosto, chocada com a informação.

- A Gabi me disse que a senhora também é coach...

- Sim, sou. Se tiver um minuto, adoraria te mostrar o projeto que estou trabalhando no momento. Ainda estou em fase de finalização, mas seria uma incrível honra se você pudesse me dar sua opinião – ela pediu, parecendo uma adolescente de tão entusiasmada.

- Claro, só vou dispensar o táxi primeiro...

Menos de cinco minutos depois, os dois já tinham entrado na casa do Alê, conversando como se fossem velhos amigos.

- Então minha mãe e seu pai já são tipo “bests” – o Alê comentou colocando a mão no queixo – Acho que podemos tirar proveito disso, hein?

Lancei um olhar cheio de segundas intenções na direção do meu amigo – Sem dúvida nenhuma! Com os nossos pais se dando bem, com certeza ficará mais fácil conseguir tudo o que a gente quiser.

- Essa é a ideia, bonequinha! Essa é a ideia... – ele sorriu para mim antes de subir novamente no skate e acenar para que eu o seguisse – Vamos investigar melhor essa história, Gabs.
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Notas finais: Uaaaau! Várias revelações nesse cap. É como o título sugere: o mundo dá voltas. 
E o que acharam do papi dela? E a Gabi sambando na cara da Mari? Uiii, parece que a maré está ficando boa para a nossa bonequinho de novo, hein? E esse lance do Marco ficar amigo da Melissa? Será que isso ainda vai render? Huum... O que acham?
Beijocas, pessoal! Até o próximo capítulo!

*** Bora para o próximo capítulo? Então clique aqui



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Oiieeee.... xD

Espero que esteja curtindo a fic!
Se estiver, não deixe de "perder uns minutinhos" para me contar a sua opinião, registrar o seu surto ou apenas para dar um oi! E se não estiver curtindo, aproveite o espaço para "soltar o verbo" e falar o que te desagradou!

Uma história não existe sem leitores! São vocês que me dão forças para continuar escrevendo e caprichando cada vez mais em cada capítulo! Portanto, deixe de "corpo mole" e venha "prosear" sobre as fics comigo e com as outras meninas que passam por aqui! *-*

Cada comentário ilumina muito o meu dia! Não deixe de fazer uma quase-escritora feliz: Comente! *-*

E não esqueça de deixar o seu nome, ok?!