Notas iniciais: “Tá tendo” muita “sofrência”, lágrimas e babados. Vida
da Gabizinha não tá fácil, minha gente...
_________________________
Mais uma noite mal dormida. Eu me revirava na cama
e abria os olhos sem saber qual pesadelo era pior: o dos meus sonhos ou a
realidade.
Imagens do Edu junto com a Nathália não saiam da
minha cabeça. Será que ele a abraçava do mesmo jeito que me abraçava? Será que
a olhava tão intensamente com os seus olhos verdes de tempestade, tentando
fazer que ela entendesse o que ele não conseguia expressar?
Respirei fundo, as lágrimas rolando pelo meu rosto.
Eu sempre acreditei que era exagero sofrer por amor, mas a dor no meu peito
provava, de forma cruel, o quanto uma paixão não correspondida pode ser
avassaladora.
Por fim, o cansaço venceu e acabei pegando no sono.
Quando acordei, senti o corpo pesado, como se tivesse levado uma surra, e a
boca com um gosto horrível. Com a consciência pesada, lembrei que dormi sem
escovar os dentes.
Puts!
Depois de um esforço tremendo, sai da cama e fui
direto para o banheiro. Escovei os dentes e já aproveitei para tomar um banho,
tentando me livrar das sensações ruins da noite passada. Enquanto escolhia uma
roupa, prometi para mim mesma que seria forte. Não era certo me abalar daquele
jeito só por causa de um garoto. Todos eles estavam pensando que poderiam me
usar, me quebrar e jogar os restos fora. Eu mostraria o quanto estavam errados.
Daria a volta por cima e “esfregaria na cara” deles como nem havia me abalado
com as traições.
Desci para tomar o meu café da manhã com a raiva
fervilhando dentro de mim. Minha vontade era encontrar cada um deles,
principalmente a Mari e o Edu, e gritar que eles não tinham o direito de fazer
isso. E tudo que eu fizera pelos dois? E tudo que passamos juntos?
Tomei meu café da manhã sem nenhum ânimo. Aliás,
não tinha vontade de fazer nada, principalmente o dever de casa que já estava
atrasado. Voltei para o meu quarto, a cama ainda desarrumada fazendo um convite
sedutor para que eu voltasse a me deitar.
“Não
Gabriela, você precisa ser forte”,
repeti em voz alta. Desviei o olhar e passei a reparar no meu quarto: a mobília
branca em estilo provençal com tons de azul, a minha escrivaninha de estudos
com o notebook largado de qualquer jeito sobre ela, minha poltrona de leitura
ao lado da minha estante com livros e objetos pessoais, as fotos nos porta-retratos...
de repente me dei conta do quanto tudo ali parecia frágil, fugaz.
O que de fato eu tinha? As amigas que estampavam as
imagens no meu mural não queriam saber de mim. O cara pelo qual eu estava
apaixonada me trocou por uma “pirigueti” qualquer. Meus livros, minhas
roupas... o quanto aquilo tudo realmente me pertencia, ou quanto eu apenas as
usava para vender algo que eu não era? E se eu realmente fosse uma boneca de
porcelana?
Novamente a sensação de estar me afogando tomou
conta de mim. Eu precisava desesperadamente de algo para me apegar, uma bóia de
salvação que me puxasse de volta para a superfície.
Na parede perto da cama havia uma barra presa à
parede para fazer os meus exercícios de balé. Procurei as sapatilhas no
armário, vesti uma malha e parei em frente à barra, encarando meu reflexo no
espelho que ficava logo atrás. Sim, eu era uma bonequinha de porcelana,
parecida com aquelas bailarinas das caixinhas de joias. Sempre que alguém
queria vê-la dançar, abria a caixa e ouvia a música. Quando cansava, era só
fechar a tampa para condenar a bailarina à escuridão novamente.
Com a expressão triste, comecei a me alongar
sentindo os músculos reclamarem por conta do tempo parado. Fui movimentando
cada parte do meu corpo e, aos poucos, me acalmando. Era bom fazer algo que eu
dominava, que só dependia de mim para dar certo. E era melhor ainda ter algo
para manter a cabeça ocupada.
- Arruma essa postura, Gabriela!
Olhei para o lado e vi minha mãe parada na porta,
me examinando. Sua expressão era séria, como a de um mestre muito zangado que
examina um aluno preguiçoso. Estava tão imersa no meu próprio mundo que nem
tinha me dado conta que Dona Beatriz não estava em casa. Suas vestes de
ginástica e o rosto um pouco suado denunciavam que ela saíra para correr logo
pela manhã. Eu só queria saber de onde saía tanta disposição...
- Vem, deixa eu te ajudar – se aproximou,
corrigindo minha postura. Ficamos ali por um tempo, trabalhando em alguns
movimentos simples de balé, conversando, dona Beatriz ralhando comigo por não
ter me exercitado nem um pouquinho durante as férias.
Depois descemos para fazer o almoço e nunca me
senti tão grata por ter minha mãe por perto. Mesmo pegando no meu pé por causa
da dieta e falando que ganhei peso, foi bom manter o foco nessas atividades
simples: conversar, cortar as verduras, organizar os pratos, lavar a louça...
Às vezes esperamos tanto que esquecemos que a vida realmente acontece nos
pequenos detalhes.
Voltei ao meu quarto decidida a “ficar bem”. Queria
manter minha cabeça ocupada, por isso fui até a minha estante e puxei o
exemplar de “Cidades de Papel” para ler. Achei estranho a frase do livro ter
surgido na minha mente quando estava chorando no banheiro do colégio e fiquei curiosa
para descobrir a razão. Folheei as páginas tentando me lembrar dos detalhes da
história. Acabei recordando que só comprei aquele livro porque, na época, não
se falava em outra coisa que não fosse “A Culpa das Estrelas”. Acabei lendo
“Cidades de Papel” na expectativa que fosse igual à história da Hazel e, como
não tinha muito a ver, terminei sem nem prestar atenção no conteúdo.
Sentei na poltrona e me concentrei na leitura
durante todo o resto do sábado. Fiz questão de deixar meu celular de lado para
resistir à tentação de puxar assunto com o Edu ou começar uma D.R. com a Mari.
Eu sabia que não adiantaria de nada pedir uma justificativa para a loira. No
máximo, ela usaria todo o seu cinismo para dizer que só estava tentando me
proteger.
Já sobre o carioca, eu não sabia o que pensar. Nós
não tínhamos nada sério, mas depois de tudo o que aconteceu, eu esperava mais.
Na verdade, eu esperava muito mais... Poxa, a gente se dava tão bem, gostávamos
das mesmas coisas, compartilhávamos das mesmas ideias e, o mais importante:
tínhamos uma química tão boa. Por que ele tinha que se meter com a Nathy?
No finalzinho da tarde, quando levantei para
comer, havia uma mensagem não lida no meu celular.
“Desculpa
não responder ontem. Vi a mensagem, mas acabei me distraindo e deixando o celular
de lado. Mas deu tudo certo com a mudança”.
Li várias frases do Edu, procurando o sentido
naquilo tudo. Por que ele ainda se preocupava comigo se estava ficando com
outra menina? O que ele queria, afinal?
Joguei o aparelho longe, sem me preocupar em
responder. O Edu era um mistério que eu nunca iria desvendar...
***
Passei o domingo inteiro me esforçando para manter
a cabeça ocupada. Fui à feira com a minha mãe, me alonguei e praticamente
devorei o livro, marcando vários trechos que me identifiquei. Um, em especial,
ficou na minha cabeça por muito tempo me fazendo refletir:
“Eu olhava
para baixo e pensava que eu era feita de papel. Eu é que era uma pessoa frágil
e dobrável, e não os outros. E o lance é o seguinte: as pessoas adoram a ideia
de uma menina de papel. Sempre adoraram. E o pior é que eu também adorava. Eu
tinha cultivado aquilo, entende? Porque é o máximo ser uma ideia que agrada a
todos“.
***
A
segunda-feira chegou com céu azul, uma brisa suave e o clima agradável de
verão. Enquanto caminhava para o colégio, eu pensava que não poderia existir
contraste maior: dentro de mim, o clima era pesado e denso, como se houvesse
uma “nuvenzinha negra” pairando sobre minha cabeça e roubando toda a beleza do
cenário.
Para
me distrair, comecei a imaginar uma vingança em grande estilo, semelhante a da
Margo no livro. Seria o máximo rir da cara da Mari e da Nathy e depois fugir
para viver uma aventura épica. Nos meus delírios mais caprichados, o Edu até ia
atrás de mim, assim como o Quentin, e faria a mais linda das declarações de
amor.
Fiquei
tão empolgada com esses pensamentos que não quis entrar no colégio e esperar
pelo início da aula na sala. Ao invés disso, fui até a lanchonete que havia ali
perto e pedi só um suco para não sair da dieta. Com a música alta nos fones,
passei a pesquisar na internet informações sobre a adaptação do livro que
estrearia no cinema, invejando a Cara Delevingne por ser tão linda e magra.
Quando dei por mim, estava atrasada.
Droga!
Corri
de volta para o colégio, chegando um minuto antes do sinal tocar. Subi as
escadas, pulando os degraus de dois em dois, com a respiração pesada e a
mochila largada de qualquer jeito no ombro. Ao passar pelos corredores, reparei
que algumas pessoas me olhavam de um jeito estranho e fiquei sem entender o
porquê. Será que eu estava muito descabelada por causa da correria? Antes de
entrar na sala, chequei se a minha camiseta não estava do lado avesso ou se
tinha derrubado suco no uniforme. Nada! Balancei a cabeça, concluindo que
estava imaginando coisas e entrei, ainda com passos rápidos.
Foi
só quando cheguei na metade do caminho que a realidade me atingiu como um banho
gelado em pleno inverno: eu não poderia me sentar no lugar de sempre. Se antes,
quando estávamos fingindo que tudo estava bem, já estava difícil ficar na
companhia de Marília e companhia, como seria agora?
Estaquei
no meio da sala, tentando decidir o que fazer. Em seus lugares, todas as
meninas do grupo fingiam me ignorar, demonstrando subitamente um incrível interesse
pelas suas anotações e apostilas.
-
Bom dia, pessoal! Temos muito conteúdo pela frente, então não vamos perder
tempo. Gabi, por favor, vá para o seu lugar – o professor de Física, um
gordinho careca e simpático, pediu ao entrar na sala.
-
Gabs, senta aqui comigo. Estou precisando de ajuda nessa matéria – o Alê levantou
o braço para me chamar.
-
É bom mesmo o senhor pedir ajuda, “seu” Alexandre. Se as suas notas continuarem
como no ano passado, não haverá milagre que te salve da reprovação dessa vez –
o professor alertou em tom de brincadeira.
-
Fica tranquilo, “profs”. Gabi é craque em física – meu amigo retrucou enquanto
eu praticamente corria para me sentar ao seu lado, respirando aliviada por não
precisar enfrentar a “tortura” de ficar junto com as “traíras”.
-
Obrigada – disse depois de me acomodar no meu lugar.
-
Obrigada, nada! Trate de me ajudar com essa matéria porque não quero repetir de
ano...
-
Sinto dizer, mas você pediu para a pessoa errada. Sou péssima em física –
respondi pegando meu material na mochila.
-
Bom, então, pelo menos, terei companhia nas aulas de recuperação... – ele fez
graça, me fazendo rir.
A
aula começou, e fiz o possível para prestar atenção na matéria. De vez em
quando, eu desviava minha atenção e flagrava o Edu me encarando, com uma
expressão preocupada. Fiz questão de ignorá-lo, não me esforçando nem um pouco
em disfarçar o meu aborrecimento com ele.
***
Na
hora do intervalo, passei a desconfiar que havia “algo” no ar. Muitas pessoas
olhavam para mim e depois cochichavam, ou disfarçavam antes de cair na risada.
-
Alê, o que está acontecendo? – perguntei, começando a sentir um nó no estômago.
-
Com certeza só estão comentando que você não faz mais parte do seleto e nobre
grupo de amigas da Marília – o tom do skatista era irônico.
-
Será?
-
Aposto que sim. É que você sempre esteve do lado de lá, por isso nunca prestou
atenção. Mas tudo o que acontece com a “realeza” gera muitos comentários entre
os “súditos”. E depois ainda dizem que estamos no século 21 – fez careta, tentando ridicularizar a situação,
antes de mudar o assunto para uma competição de skate que aconteceria em Mogi.
Não quis insistir no tema, mas o desconforto dentro de mim foi me incomodando
cada vez mais, como uma pedra no sapato. Eu sabia que havia algo errado, só não
sabia o quê.
Mais
tarde, depois da aula de matemática, tive a certeza que havia algo muito errado.
Fui até o banheiro e, ao me ver, um grupo de meninas começou a rir e fazer
comentários irônicos em voz alta.
-
Por favor, fica comigo. Por favor, por favor...
-
Se você não ficar comigo, eu vou morrer virgem...
Em
pânico, me tranquei em uma das divisões do banheiro. De repente, tudo começou a
fazer sentido na minha cabeça:
1
– a minha transa com o Edu não era mais segredo para ninguém;
2
– De alguma forma, o que era para ser uma lembrança linda foi transformado em
motivo de chacota;
3
– Eu só conhecia uma pessoa que seria capaz de fazer isso: Mari. Mas como ela
descobriu? E até que ponto o Edu estava envolvido nisso?
Sentei
na tampa do vaso, voltando a me afogar no mar de desespero. Quando aquele
pesadelo teria fim?
Por
sorte, meu celular estava no bolso e pude mandar uma mensagem para o Alê
pedindo que ele descesse com a minha mochila. Esperei até que todo mundo fosse
embora para sair do banheiro.
-
A dor de barriga foi feia, hein? – o Alê estava parado ao lado da porta do
toalete, sobrecarregado com os nossos materiais. Mesmo tentando fazer piada,
dava para perceber que ele estava tenso.
Não
respondi nada. Apenas peguei minhas coisas e comecei a andar, as mãos tremendo
de nervoso.
-
O Edu estava perguntando por você... – o skatista puxou assunto, correndo atrás
de mim para me alcançar.
-
Problema dele – retruquei de modo azedo.
-
Gabi, espera! – ele puxou meu braço, me forçando a olhar para ele – Pelo jeito
você já sabe, né?
-
Sabe do quê? – me soltei e voltei a caminhar, me segurando para não chorar.
-
Olha, é o seguinte... –mexeu no boné, desconfortável – eu não quis contar antes
porque você já estava super “na bad” por causa da conversa com a Mari. Mas
desde quinta está rolando um boato bem tenso sobre você...
-
Tem a ver com algo que aconteceu no dia da festa de Carnaval do Gueto? – meu
coração parou dentro do peito e, assim que ele confirmou com a cabeça, senti as
lágrimas rolarem pelo meu rosto como se as comportas de uma represa tivessem
rompido. Eu simplesmente não conseguia acreditar no que estava acontecendo.
Minhas pernas bambearam e o mundo pareceu girar mais rápido, como se estivesse
fora de compasso.
-
Gabi, calma! – o Alê me abraçou, solidário.
-
Nossa! Não basta ter ficado com um primo, agora quer o outro? – uma garota
comentou em tom pejorativo ao passar por nós.
Meu
amigo não se intimidou. Continuou com um dos braços ao redor do meu ombro,
enquanto lançava um olhar bastante contrariado em direção à moça.
Demorou
um tempo até que eu conseguisse controlar o meu choro. Já estávamos na metade
do caminho para casa quando consegui pedir que ele me contasse o que aconteceu.
-
A Carol te contou da briga do show, né? Que a Mari começou a falar que você
estava se jogando para cima do meu primo, dando em cima dele na cara larga e
esse “lenga lenga” todo? – assenti com a cabeça antes de ele continuar – Pois
é... Ela só deu continuidade à história, dizendo que você ficou tão, mas tão em
cima do meu primo que ele... – o skatista encarou o chão sem coragem de me
olhar – só dormiu com você por dó.
Estava
tão em choque que não tive reação ao escutar aquela frase. Para mim, parecia
algo muito distante, que poderia ter acontecido com uma Gabriela de outro planeta
ou galáxia, mas não comigo. Foquei toda minha atenção em dar um passo, depois
outro, e o seguinte, e mais um... De repente, o mínimo movimento exigia um
esforço fora do comum.
-
E foi por isso que você não foi convidada para a última festa no Gueto. Porque
o Edu disse que não aguentava mais você no pé dele. Disse que se você fosse,
não passaria nem perto da casa da Carol – meu amigo continuou, a voz cautelosa
como se estivesse analisando até qual ponto eu aguentaria ouvir.
Um
passo, outro passo, respirar, continuar em pé. Era só nisso que eu pensava.
-
Teoricamente, a Marília espalhou esse boato para dar o troco da Festa de
Carnaval, quando ela fez um “superplano mirabolante” para fazer o Edu ficar com
a Nathália e você melou tudo com o seu poder de sereia, e ainda “sambou” na
cara delas – o skatista analisou.
-
E agora ela conseguiu o que queria... – minha voz quase não saiu – A poderosa
Marília vence, de novo.
-
Tudo indica que sim – seu tom era triste.
Passamos
pela entrada do condomínio em silêncio. As lágrimas voltaram a cair, criando um
rastro de tristeza por onde eu passava.
-
Gabi, eu conversei sério com meu primo ontem. Fiquei “puto” quando soube do que
aconteceu e quis tirar satisfação com ele. O Edu jura que não contou nada para
ninguém sobre o que rolou entre vocês – o Alê retomou a conversa quando paramos
em frente à sua casa – Eu tenho uma teoria sobre o que aconteceu. Para mim, a
Marília e a Nathália deixaram o Eduardo muito bêbado na festa. Pelas fotos no
Instagram, meu primo estava bastante alterado. E não estou falando isso apenas
para defendê-lo – assumiu um tom defensivo ao ver a minha expressão de
desagrado sobre a suposta inocência do carioca – É que conheço o Eduardo melhor
que vocês, e sei que ele fica “alegre” bem rápido... Aí, depois que perdeu o
juízo, a Nathália caiu matando em cima do meu primo, fazendo exatamente a mesma
coisa da qual tanto te acusam, enquanto a Marília pegava o celular dele,
entrava no Whats e zás! Descobria tudo o que você e o Eduardo fizeram “no verão
passado”.
Encarei
o meu amigo, a vista embaçada e o corpo mole. Eu me sentia fraca, completamente
sem forças – Parece uma boa teoria – foi tudo o que consegui dizer - Alê, vou
para casa, preciso comer alguma coisa. Obrigada por me ajudar – a frase saiu de
maneira automática, uma versão de mim que insistia em manter os bons modos
enquanto a outra queria sair correndo dali e passar o resto do dia, se possível
até o resto da vida inteira, escondida.
-
Gabriela, estou ficando preocupado com você. Nunca te vi tão branca,
bonequinha.
-
Eu não sou uma boneca de porcelana – respondi, soando mais brava do que desejava.
-
Tudo bem, não precisa ficar nervosinha – o Alê levantou o braço, como se
estivesse se rendendo – Só quero que você saiba que estou ao seu lado, beleza?
Pode contar com esse “vida loka” aqui – deu um sorriso irônico, alfinetando a
Carol. Pelo visto, ele não havia a perdoado.
-
Esse “vida loka” é melhor que muita “nobreza” por aí – retruquei.
-
Nem melhor nem pior, Gabs. Só eu mesmo – piscou para mim – Fica bem, mocinha. E
se precisar, é só gritar. Acho que consigo escutar se você estiver na varanda
do seu quarto... – lançou um olhar para a minha casa, como se estivesse
avaliando a hipótese.
Abri
um sorriso em resposta. O gesto me pareceu tão estranho que me questionei
quando foi a última vez que sorri. Uma lembrança da praia do resort surgiu na
minha mente, como se fosse parte de uma memória muito antiga e não apenas da
semana anterior.
-
Alê, vou entrar... – me aproximei, abrindo os braços para abraçá-lo – Até
amanhã.
-
Se cuida – pediu, antes de me soltar.
Virei
para seguir na direção da minha casa, quando o skatista voltou a me chamar.
-
Oi – respondi com a voz desanimada.
-
Não tem problema nenhum ser uma boneca de porcelana. Ninguém é inquebrável.
Assenti
com a cabeça, antes de retomar o meu caminho. Eu queria contestar, dizer que
não era tão frágil quanto todos imaginavam, mas naquele momento eu não tinha
como negar a verdade: eu era uma boneca de porcelana quebrada em muitos pedaços.
***
Quando
cheguei em casa, minha única vontade era me trancar no meu quarto e nunca mais
sair. Me joguei no sofá, deixando a mochila largada no chão. Fechei os olhos e
respirei fundo, tentando pensar em uma saída. Eu sabia que não adiantaria falar
com a Marília, mas e com o Edu? Será que ele era tão inocente como o Alê
acreditava? E será que eu queria mesmo descobrir o quão culpado ele era?
A
ideia de fugir em uma aventura épica como a Margô me parecia cada vez mais atraente.
Na verdade, eu toparia qualquer coisa para não ter que enfrentar aquelas
pessoas rindo de mim e comentando sobre a minha vida.
-
Gabriela, não vai almoçar? – a Maria, nossa diarista, falou baixinho perto de
mim.
-
“Tô” sem fome – respondi, sem me mexer. Apesar de adorar a Mary, como costumava
chamá-la, não queria conversa com ninguém naquele momento.
-
Ihh, que foi? Dia ruim na escola? – sua voz ficou preocupada.
-
Dia ruim, vida ruim, tudo ruim... Ai Mary, só me deixa quietinha aqui, vai... –
praticamente implorei.
-
Eu até queria, mas sua mãe deixou ordens claras para você almoçar. Dona Beatriz
me fez preparar um monte de coisa integral e saudável, porque diz que você
precisa perder peso. Não sei onde, mas tudo bem... – ela voltou a insistir.
Soltei
um gemido alto, ficando ainda mais frustrada. Almoço me lembrava dieta, que me
lembrava apresentação, que me lembrava que os ensaios recomeçavam naquele dia.
Ótimo!
A situação só melhorava... Só que não!
Com
muito esforço, me levantei e segui para a cozinha. No cardápio do dia, tínhamos
arroz integral, frango grelhado e diversos tipos de verduras e legumes.
Uma
delícia!
Comi
muito mais porque a Maria estava me observando do que por vontade. Me empenhei
em fazer uma cara um pouco mais feliz para evitar perguntas constrangedoras. O
plano pareceu dar certo, porque a diarista não fez mais nenhum comentário.
-
Tenho uma surpresinha para adoçar a sua vida – ela disse em tom animado quando
terminei a refeição. Vi a Maria seguir até a geladeira e tirar de lá de dentro
uma forma com um delicioso bolo com cobertura de chocolate.
-
A vizinha trouxe para mim, mas acho que você está precisando mais do que eu. Só
não conta para a sua mãe – pediu.
Ela
colocou uma fatia em um prato e estendeu para que eu pegasse. Hesitei por um
momento, a foto da Nathália surgindo na minha mente: belos cabelos cor de mel,
rosto sempre maquiado e roupas que valorizavam o seu belo corpo. Eu não tinha
nada do que ela tinha. Nem beleza, nem charme, nem belas curvas. Eu já era sem
graça. Se desatasse a comer e ficasse gorda, aí que não teria mais jeito mesmo.
-
Acho melhor não, Mary – recusei.
-
Só um pedacinho – insistiu, ainda com o braço estendido.
Por
educação, acabei aceitando. A ideia era comer apenas algumas garfadas, mas
acabei não resistindo. Assim que senti o gosto do chocolate, uma sensação de
alívio pareceu tomar conta de mim. Era como anestesiar a dor, acalmar os
pensamentos, fugir para um lugar onde só comer mais um pedaço de bolo importava.
Quando
dei por mim, já estava na terceira fatia. Comi tão rápido que até a Maria
estava assustada, embora tentasse disfarçar.
-
Nossa, daqui a pouco minha mãe chega para me buscar. Melhor subir para trocar
de roupa – me apressei em sair dali, subindo a escada quase correndo. Só parei
quando cheguei ao banheiro. Mais uma vez, não me reconheci ao ver o meu
reflexo. Levantei minha blusa para analisar minha cintura. Era impressão minha
ou havia um volume ali que não existia antes?
Fechei
os olhos com força tentando impedir que as lágrimas rolassem. Eu não aguentava
mais chorar.
Lembrando
da promessa de nunca mais repetir o que fizera na sexta-feira, sai do banheiro.
Eu não iria forçar o vômito. O jeito agora era “pegar firme” na dieta e evitar
novos exageros. Pensando bem, a volta dos ensaios seria providencial. Eu
poderia estender as sessões de exercício até mais tarde para queimar as
calorias extras.
Me
sentindo um pouco mais no controle da situação, fui trocar de roupa. Acabei
demorando um pouco mais de tempo para encontrar tudo o que precisaria para o
ensaio, pois não me preocupei em organizar meu material de balé durante as
férias. Se minha mãe soubesse disso, seria bronca na certa. Ela detestava bagunça,
principalmente com as coisas de dança.
Mal
terminei de me arrumar, ouvi a buzina lá embaixo. Desci correndo, gritando um
“tchau” para a Maria e entrei no carro.
-
Pronta para voltar a brilhar? – dona Beatriz perguntou, muito animada. Era
incrível o quanto trabalhar deixava minha mãe empolgada...
-
Ahan... – menti, fingindo estar distraída com o celular para não precisar
encará-la nos olhos. Abri o Instagram, só para dar de cara com uma foto da Mari
junto com a Nathália e a Carol. A legenda dizia “Tenho as melhores”.
-
Aff... – resmunguei, bloqueando a tela do meu iPhone. Com certeza a indireta
era para mim. A loira estava se vangloriando da sua vitória, demonstrando todo
o seu “poder”. Bem que diziam que a gente só conhecia verdadeiramente alguém
quando terminávamos um relacionamento com ela. Eu estava conhecendo a
verdadeira Marília, e a verdade era assustadoramente cruel.
***
Nunca
pensei que ficaria feliz em estar de volta ao estúdio de dança da escola da
minha mãe, mas rever meus companheiros de balé foi reconfortante. Era como
estar de volta a um lugar seguro. Abracei o Miguel com força e cumprimentei
todo o pessoal enquanto reparava que alguns tinham cortado o cabelo ou mudado o
visual de alguma maneira. Era incrível como nunca encontrávamos algo ou alguém
exatamente igual ao que deixávamos. A vida estava o tempo todo nos mudando,
forjando novas formas para que pudéssemos nos adaptar às novas situações.
Ficamos
um tempão conversando, até dona Beatriz mandar todo mundo para o aquecimento.
Escolhi
um lugar na barra e comecei os exercícios, mas algo estava errado. Eu não
conseguia focar nos movimentos. Minha mente trabalhava como um filme no modo
“repeat”, relembrando tudo o que aconteceu, remoendo cada detalhe, o coração
pesado com tantas dúvidas e ressentimentos.
-
Gabriela, está com a cabeça nas nuvens? – minha mãe chamou minha atenção.
Estávamos ensaiando um dos atos do balé, e eu não acertava o tempo certo de
saltar para cair nos braços do Miguel.
Seguimos
nessa “guerra” durante todo o resto do ensaio. Ela pegando no meu pé mais do
que deveria e eu errando muito além do permitido para uma protagonista. Meu
partner se esforçava para me ajudar, mas não adiantava. Era como se eu tivesse
acordado com “dois pés esquerdos”.
-
Mãe, vou ficar aqui para praticar um pouco mais, ok? – pedi, depois que
encerramos as atividades e o pessoal se despediu de nós.
-
Bom mesmo, porque hoje você estava um desastre! Se não melhorar, não tem como
voltar a ser Julieta – disse, antes de me deixar sozinha no estúdio.
“Falta
muito para esse dia acabar?”, pensei comigo mesma, indo até o armário onde
deixara minha bolsa para tomar água.
“Beleza,
cinco minutos de descanso e depois vamos melhorar esse balloné”, falei em voz
alta para tentar me animar. Ficar reclamando não adiantaria nada.
Tomei
um longo gole de água e peguei o celular para dar uma olhada. Me espantei ao
ver um Whats do Edu:
“Não vai mais falar comigo?”
Fiquei
tentada a responder que não queria só falar. Eu queria ficar com ele, cuidar
dele, ajudá-lo com a mudança, perguntar se o tornozelo estava melhor. Eu queria
passar o dia na praia ao seu lado e, se possível, mais pra frente ter dois
filhos e um cachorro com ele, como dizia a música. Mas o orgulho e a raiva
falaram mais alto e não quis dar moral ao carioca:
“Nada a ver... Só estou na correria porque
voltaram os ensaios”.
Fiquei
que nem uma boba encarando a tela do celular até que a resposta chegasse. Eu
queria odiá-lo, xingá-lo, mandá-lo para o inferno, mas havia algo que me
prendia a ele. Uma necessidade de tê-lo por perto que se mostrava maior que
tudo. A raiva que estava sentindo diminuiu um pouco. Só não conseguia entender aonde ele queria
chegar com aquele jogo de “morde e assopra”.
“Ah, pensei que estivesse brava comigo. A
gente nunca mais se falou”.
Brava
eu estava. E mais cedo ou mais tarde,
teria que confrontá-lo. Precisava saber o que havia acontecido. E já que
ele estava dando a deixa, não custava aproveitar a oportunidade.
“Na verdade, queria fazer uma pergunta”.
“Pode fazer. Sabe que comigo não tem erro, né?
Falo tudo o que tem para falar”.
Dei
um sorriso amargo. Considerando a falta de diálogo sobre assuntos realmente
relevantes, eu só poderia chegar a duas conclusões: ou ele não falava tudo o
que pensava, ou não tinha nada para falar comigo. Fiquei assustada ao perceber
que tinha medo de descobrir que a segunda hipótese era a resposta certa.
“Você contou para alguém
sobre o que rolou entre a gente?”
“Não, de jeito nenhum. Eu
acho que mexeram no meu celular e leram a nossa conversa. Só não sei quem fez
isso. Mas eu sinto muito pelo o que aconteceu. Conta comigo se precisar de
alguma coisa”.
Meus
dedos coçaram para digitar “Preciso de
você, seu idiota. Será que não dá para perceber?”. Respirei fundo, me
obrigando a pensar friamente. Ele poderia muito bem estar usando a teoria do
Alê para se justificar e sair de inocente da história. Como eu poderia ter
certeza do que aconteceu?
“Contar com você? Acho que não posso. Até onde
sei, você disse que não iria à última festa do Gueto se eu fosse convidada”,
alfinetei, deixando a raiva falar mais alto.
“Como que é? Eu nunca disse
isso”,
a resposta veio tão rápido que até me assustei.
O
celular apitou novamente, sinalizando mais uma mensagem.
“Não sei porque inventaram
isso, mas não é verdade. Você é uma garota supergente fina e muito legal. Não faz
sentido querer que você fique perto de mim”.
Mas
se ele não me queria longe, então por que estava ficando com a Nathália e não
comigo? Será que eu deveria entrar nesse assunto? Não seria ser chata demais,
considerando que não tínhamos nada sério?
Fiquei
na dúvida do “pergunto ou não pergunto”, quando uma notificação fez a tela do
meu celular brilhar.
“Gabi, o que rola entre a
gente é algo de boa. Coisa de quando a gente se encontrar, se os dois estiverem
a fim, a gente fica. Você é uma garota sensacional, não tem porque ficar com
isso de briga ou de ‘se ela for, eu não vou’”.
Várias
sensações tomaram conta de mim quando terminei de ler a mensagem. Alívio, por
finalmente descobrir o que ele sentia; tristeza, por ele não corresponder meus
sentimentos, arrependimento, por ter me entregado de corpo e alma em um
relacionamento que não existia; vergonha por ter me “jogado” em cima dele na
festa do Gueto...
Eu não sabia o que responder. Fiquei
sem chão, sem ar, completamente perdida. Nos últimos meses, o Edu foi o meu
único assunto. Era de dia, à noite, nos finais de semana... Ele foi responsável
por um dos momentos mais marcantes da minha vida. Paguei um alto preço para ter
sua atenção: perdi minhas amigas, era o alvo da principal fofoca do colégio,
estava comendo como uma louca e ficando gorda e para quê?
E agora? O que fazia com esse “de
boa”? Era isso que havia do outro lado do penhasco?
- Não sabia que dava para ensaiar
pelo celular – a voz da minha mãe, cortante e fria, me tirou do meu devaneio.
- Desculpa, mãe. Só estava
resolvendo um problema – falei, parecendo uma criança pega no flagra ao fazer
arte.
- As férias já acabaram, Gabriela.
Se você quiser continuar com o papel de Julieta, vai precisar focar 100% no
balé. Grandes apresentações estão a caminho e preciso da minha principal
bailarina afiada – seu tom calmo, mas firme, soava como uma ameaça velada.
- Certo. Eu vou me esforçar – tentei
parecer convincente, mesmo desconfiando que ainda soava como uma criancinha
assustada.
- Assim espero. Ainda tenho mais
algumas questões para resolver com a equipe técnica. Aproveita esse tempo para
ensaiar de verdade – enfatizou bem as últimas palavras antes de sair.
“Edu,
preciso voltar para o ensaio. A gente se fala depois”.
Digitei a mensagem apressada, antes
de largar o celular e voltar aos treinos. Trabalhei pesado por duas horas,
repetindo os passos inúmeras vezes, até ficar esgotada fisicamente. Essa foi a
melhor parte do dia, porque fiquei tão cansada que desmaiei na cama depois que
tomei um banho. Minha vontade era a de não acordar nunca mais.
______________________________
Notas finais: Ai gente, Gabi levou um fora do bofe!
Tadinha!
E no final das contas, será que o Edu é
mesmo inocente? E a Marília? Cara, como alguém vai de amiga à cobra naja assim,
tão de repente?
O que acharam de tudo isso? Me
conteeeeem! Preciso saber!
E ó, a partir do próximo capítulo,
teremos uma reviravolta beeeem interessante. Querem uma dica? Tem a ver com
Caio. Hum... o que será que vem por aí? Algum palpite?
Me perdoem a demora para postar. Meu
curso terminou e o trabalho está mais suave, então acho que agora voltaremos à “programação
normal”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Oiieeee.... xD
Espero que esteja curtindo a fic!
Se estiver, não deixe de "perder uns minutinhos" para me contar a sua opinião, registrar o seu surto ou apenas para dar um oi! E se não estiver curtindo, aproveite o espaço para "soltar o verbo" e falar o que te desagradou!
Uma história não existe sem leitores! São vocês que me dão forças para continuar escrevendo e caprichando cada vez mais em cada capítulo! Portanto, deixe de "corpo mole" e venha "prosear" sobre as fics comigo e com as outras meninas que passam por aqui! *-*
Cada comentário ilumina muito o meu dia! Não deixe de fazer uma quase-escritora feliz: Comente! *-*
E não esqueça de deixar o seu nome, ok?!